Arquivo do mês: outubro 2014

FRED COE

A Thausand Clowns.

Fred Coe (1914-1979) foi produtor de TV, mais conhecido pelas séries de teledramas The Goodyear Television Playhouse / The Philco Television Playhouse (1948-1955) e Playhouse 90 (1957-1959). Como diretor, Coe realizou apenas dois filmes, ambos notáveis: A Thousand Clowns (Mil palhaços, 1965) e Me, Natalie (Uma garota avançada, 1969).

Em A Thousand Clowns, adaptação da peça homônima publicada em 1962 de autoria de Herb Gardner, o comediante Murray (Jason Robards) fazia sucesso em parceria com um produtor de TV (Martin Balsam), mas, enojado com seu meio, desistiu de tudo. Vive agora do salário-desemprego, sem nenhuma preocupação aparente. Seu estilo de vida é preguiçoso, alegre e repleto de fantasias, mas sem qualquer esperança de futuro.

Tipo ao mesmo tempo repulsivo e apaixonante, divertido e amargo, Murray sustenta, mal e mal, seu sobrinho Nick (Barry Gordon), de doze anos, filho ilegítimo que sua irmã teve e abandonou. O garoto, talentoso e inteligente, sabe imitar perfeitamente a fala característica de Peter Lorre e, com o tio na gaita, apresenta o fabuloso número musical “Yes Sir, That’s My Baby”.

Quando Nick escreve na escola uma redação elogiando os benefícios do salário-desemprego, algumas suspeitas são levantadas. Ao receber a visita de um casal de assistentes sociais que desejam investigar a situação do menino, o comediante consegue voltar a jovem estagiária Sandra Markowitz (Barbara Harris) contra seu neurótico chefe e namorado Albert Amundson (William Daniels), que exigia que Murray arrumasse um emprego.

Depois que Murray vira a cabeça de Sandra a favor de sua causa, ela passa a viver com ele. Embora sua nova vida seja das mais divertidas, Sandra continua a insistir para que Murray volte a trabalhar. O comediante bem que tenta, mas os empregos que lhe oferecem são todos, a seus olhos, odiosos.

Enquanto Sandra arruma o apartamento de Murray, colocando ordem na bagunça, o comediante desiste de procurar emprego e fica a passear pelos arredores do Empire State Buildig, assistindo a um por do sol no Central Park, conversando com outsiders como ele. Mas Nick percebe que o estilo de vida largado de Murray acabará por levar sua nova família à miséria.

Nick passa, então, a ralhar com Murray. O “adorável vagabundo” vê-se, assim, acuado por todos os lados, e, sem ter mais com quem se divertir, acaba por aceitar seu antigo emprego de volta, reatando com o antigo parceiro (Gene Saks), no retorno de um insuportável programa infantil da TV.

São raros os filmes existencialistas na história do cinema. A Thousand Clowns é um deles. Ele mostra o beco-sem-saída de um outsider na sociedade industrial moderna, onde as massas precisam aceitar empregos odiosos para sobreviver, abandonando seus sonhos e perdendo a alegria de viver. É um filme divertido e sério, cômico e trágico, e a dualidade de sua visão crítica do capitalismo é encarnada pelo protagonista, a quem amamos e odiamos ao mesmo tempo.

Me, Natalie (Uma garota avançada, 1969) é um filme que vi há décadas na TV. Era também um raro exemplar de filme existencialista no cinema americano, com Patty Duke encarnando Natalie Miller, uma jovem que nunca foi bonita e que sabe que nunca o será, a despeito da esperança que sua mãe tinha de que ela se tornasse atraente na idade adulta.

Decidida a viver só, Natalie se muda para Greenwich Village, alugando um pequeno loft de uma dama excêntrica (Elsa Lanchester) e consegue um emprego no Topless Bottom Club, para onde segue montada em sua motocicleta. Quando Natalie encontra o artista David, e os dois começam a namorar, ela pensa que a vida lhe sorriu e que esse caso pode dar certo. Mas logo Natalie descobre que David já está casado. Infelizmente, inexiste qualquer cópia deste filme em DVD.

Coe foi enterrado no cemitério Green River em Springs, Nova York. Jon Krampner dedicou-lhe a biografia The Man in the Shadows: Fred Coe and the Golden Age of Television (Rutgers University Press, 1997). A UCLA Film and Television Archive e o Wisconsin Center for Film and Theater Research kinescoparam produções de Fred Coe para a TV, que foram lançadas em DVD.

Filmografia parcial

A Thousand Clowns (Mil palhaços, EUA, 1965, 114’, p&b, drama, comédia). Direção: Fred Coe. Com Jason Robards, Martin Balsam, Barry Gordon, Barbara Harris, William Daniels, Gene Sacks.

Me, Natalie (Uma garota avançada, EUA, 1969, drama, comédia). Direção: Fred Coe. Com Patty Duke, James Farentino, Martin Balsam,  Elsa Lanchester.

FRIEDRICH MURNAU

Tabu.

Tabu: A Story of the South Seas (Tabu, 1931)

Ao romper seu contrato com a Fox com o advento do som e as dificuldades financeiras da Color-Art, para a qual deveria rodar um filme a cores nos Mares do Sul, Murnau produziu por sua conta uma das últimas obras-primas do cinema mudo: Tabu: A Story of the South Seas (Tabu, 1931) [1], que escreveu com Robert Flaherty, que havia rodado Moana, cujas imagens o haviam fascinado e enciumado.

Tabu tomou a forma de um documentário romântico e fantasioso, carregado de erotismo, filmado em Bora-Bora, com atores não profissionais de Bora-Bora e do Taiti.

Os nativos da ilha encontram as nativas banhando-se em cachoeiras. Todas são livres e divertem-se. Quando duas mulheres brigam, o pescador de pérolas Matahi vai separá-las e encanta-se por uma delas, Reri.

Chega um navio e todos vão até ele nadando ou remando em barcos. O sacerdote Hitu escolhe Reri para ser a protetora da tribo por sua beleza, família e linhagem. Destinada à condição de vestal, torna-se tabu: nenhum homem poderá tocá-la ou sequer olhá-la com desejo.

Matahi fica revoltado, e durante a festa de despedida, dança com Reri manifestando seu desejo no ritmo enlouquecido e nos movimentos excitantes de seu corpo seminu, que contagia a todos. O sacerdote percebe a tensão perigosa que existe nesse casal e acaba com a festa.

À noite Matahi sequestra Reri, levando-a para outra ilha. Imaginando-se livre, ele paga as bebidas com o dinheiro que ganha com a pesca de pérolas raras. Mas é enganado pelo chinês da venda, que o faz assinar por todas as bebidas consumidas, e o nativo acaba endividado. Entrementes, Hitu descobre Reri e lhe dá três dias para abandonar o amante e voltar a assumir seu papel de vestal.

Matahi não consegue comprar as passagens de navio para fugir com Reri porque precisou subornar um guarda local com sua última pérola. Desesperado, vai pescar num local proibido – tabu –, devido à presença de tubarões. Nadador exímio, Matahi consegue escapar do tubarão branco que guardava aquelas águas e volta com várias ostras, numa das quais encontra uma preciosa pérola negra.

Mas quando Matahi retorna, Reri já fora levada por Hitu em seu veleiro. Matahi deixa cair a pérola negra que conquistara junto com a flor branca que Reri deixou de despedida. O pescador tenta alcançar o veleiro a nado. Num supremo esforço, consegue alcançar o barco, mas no mesmo instante Hitu corta a corda a que ele se agarrara. O veleiro se afasta veloz. O jovem nada à deriva, esgotado, até ser vencido pelo cansaço e morrer afogado.

A vida dos nativos é o pano de fundo para o verdadeiro tema do filme: o tabu do desejo, representado pelo romance proibido entre a jovem vestal e o apaixonado pescador. Eles são separados pelo velho sacerdote tribal que, em sua dureza implacável, simboliza e encarna o próprio destino. Ele é frio e duro e sua presença ameaçadora, sombria, evoca a presença do tubarão no oceano, impondo o tabu, a proibição de amar, de ser livre, de gozar a vida.

Ao cometerem o que o sacerdote define como pecado, são expulsos do Paraíso, e precisam ganhar a vida com o suor de seus rostos na ilha onde eles se refugiam, uma Terra laica e mercantil. O pescador ingressa no ofício de pescador de pérolas, atividade que ainda exerce com a alegria que tinha ao pescar peixes, sem qualquer interesse econômico.

Mas o vendedor chinês o escraviza em dívidas. E o sacerdote Hitu os descobre e obriga a moça a cumprir seu destino de vestal caso queira poupar a vida do amado. A pérola negra que tomba ao lado da flor branca na areia é uma imagem carregada de simbolismo: também o pescador, tornado sombrio pelo desejo frustrado, submerge nas ondas do mar infinito, cruel em sua indiferença, enquanto Reri, flor branca proibida ao desejo, é privada de amor e de sexo.

É provável que na história do cinema a visão final da morte em Tabu nunca tenha sido superada em sua pungência e comoção. Feito quase que totalmente por atores amadores e com a poupança pessoal de Murnau, Tabu é uma história de amor tão inocente quanto trágica.

Uma semana antes da estreia de seu filme, Murnau sofreu um acidente automobilístico fatal na estrada de Santa Bárbara, na Califórnia. Os supersticiosos nativos que colaboraram na realização do filme atribuíram a morte do cineasta ao fato de ele ter quebrado tabus locais. Tinha 43 anos de idade. Deixou registrado, no seu diário de filmagens, uma frase que poderia servir-lhe de epitáfio: “Quanto mais os anos passam, mais eu o sinto. Meu lar não está em país nenhum, em nenhuma casa, em pessoa alguma…”

O artista que mantinha íntegra sua individualidade não encontrava mais lugar numa sociedade de massas organizadas por partidos, pensando em blocos de ideologia. Na Alemanha, indiferentes à sublime beleza de Tabu, os críticos de esquerda acusaram-no de “diversionismo”: Murnau levaria os espectadores ao Pacífico Sul “sem tocar no problema da política colonial”!

Os críticos comunistas reservavam seus elogios para os filmes russos importados da União Soviética e condenavam em bloco os filmes alemães como “filmes de propaganda capitalista, imperialista e fascista”. O realismo devia imperar mesmo no reino da fantasia. Para os comunistas, como para os nazistas, a arte deveria ser dirigida, sendo os voos da imaginação condenados como “esteticismo”, “arte pela arte”, “diversionismo burguês”. Não admitiam nenhuma fuga à realidade.

Contudo, mesmo no afã de tudo reduzir à luta de classes, os comunistas tiveram o mérito de denunciar o processo de nazificação da indústria cinematográfica a partir da aquisição da Ufa por Alfred Hugenberg, denunciando, a seu modo, a propaganda nacionalista e militarista desenvolvida nas Atualidades da Ufa, que passaram a apresentar inúmeras sequências de paradas e homenagens militares; nos Preußenfilme que faziam da guerra quadros belos e atraentes; e até em certos filmes “pacifistas”, que terminavam por romantizar as batalhas [2].

A edição especial em Blu-ray de Tabu traz a cópia restaurada por Luciano Berriatúa / Stiftung Murnau, apresentando o filme pela primeira vez na edição aprovada pelo cineasta, com cenas cortadas nas versões comerciais, e em seu formato original: 1.19:1, que é quase quadrado. Podemos ver imagens nunca antes vistas de Tabu. Além disso, nos extras, temos uma série de out-takes do filme; um making-of da restauração, com duração de quinze minutos, realizado por Berriatúa; o curta-metragem do cinema nazista Treibjagd in der Südsee (1940), que pirateia as cenas filmadas por Murnau para um documentário sobre a pesca coletiva dos peixes pelos nativos do Taiti, que ficou inacabado.

Assistindo a Treibjagd in der Südsee somos colocados diante de um filme de Murnau que não é absolutamente de Murnau. O material é organizado de maneira realista, como num documentário antropológico, de interesse meramente “científico”, alheio às intenções de Murnau, que certamente criaria um forma poética e erótica para editar essas imagens. Uma prova eloquente de que, sem a visão totalizante e estilizada de um verdadeiro autor de cinema, as imagens mais brilhantes transformam-se em meras curiosidades folclóricas.

[1] Tabu: A Story of the South Seas (Tabu, EUA 1931, 81’, p&b). Direção: Friedrich Wilhelm Murnau. Roteiro: Murnau, Robert Flaherty. Fotografia: Floyd Crosby, Flaherty. Montagem: Murnau. Com Anna Chevalier (Reri), Matahi (o pescador Matahi), Hitu (o sacerdote), Jean (o policial), Jules (o capitão), Kong Há (o chinês). Produção: Murnau-Flaherty-Production, Paramount Publix Corporation. Lançamento: 18.3.1931, Nova York.

[2] KÜHN, Gertraude; TÜMMLER, Karl; WIMMER, Walter (ed). Film und revolutionäre Arbeiterbewegung in Deutschland 1918-1932. Dokumente und Materialien. 2 v., v. I. Berlim: Henschel, pp. 123-124.