Arquivo do mês: julho 2011

UM FILME SÉRVIO – TERROR SEM LIMITES

Cena de ‘A Serbian Film’: sodomia forçada com quadro ao fundo que evoca a ‘Santa Ceia’

Sinal dos tempos: antigamente lutávamos contra a censura a cineastas que tinham idéias, que sonhavam com um mundo melhor, que provocavam a sociedade com suas transgressões eróticas e suas críticas radicais – cineastas como Ken Russell, Costa-Gavras, Pier Paolo Pasolini, Glauber Rocha, Ruy Guerra, etc. Hoje, temos de lutar contra a censura a Srpski film (A Serbian Film – Terror sem limites, 2010), do estreante Srdjan Spasojevic, um filme trash com duvidosas pretensões artísticas, mas que fede a lixo, feito por um cineasta sérvio que declaradamente explora a violência sexual contra mulheres, crianças e recém-nascidos como meio de se destacar, usufruindo um sucesso extra-artístico que dificilmente obteria sem escândalos baratos e censuras moralistas. O filme foi impedido de ser exibido no espaço cultural da Caixa Econômica Federal  durante o RioFan. Seus organizadores programaram então uma sessão no Cine Odeon, no mesmo dia em que ele seria exibido no festival (23 de julho de 2011), mas na véspera o filme foi apreendido por ordem da juíza Katerine Jatahy Nygaard, da 1ª Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, atendendo à ação ajuizada pelo diretório regional do Partidos dos Democratas (DEM). Dias mais tarde, o Ministério da Justiça recusou-se a fornecer classificação etária ao filme, impedindo-o de ser exibido nas salas de cinema de todo o país.

Sem muita noção, os críticos compararam A Serbiam  Film com filmes extremistas dos mais diversos formatos (e por isso mesmo incomparáveis): com Salò (1975), que teve valor em seu tempo ao testar os limites da falsa tolerância do poder, mas que Pasolini talvez abjurasse hoje (como abjurou sua Trilogia da vida ao vê-la confundida na erotomania do consumismo) diante da escalada global do sadomasoquismo gratuito que tornou até seu filme-limite um cult consumido por legião de trashmaníacos que saboreiam o horror que ele deveria causar; com os nauseantes Requiem for a Dream e Irreversible, que se utilizam das técnicas mais enervantes do arsenal linguístico-cinematográfico contemporâneo apenas para causar mal-estar nas platéias que adoram consumir a humilhação, a dor e o sofrimento alheios representados no cinema para suportar as próprias humilhações, dores e sofrimentos na vida real; ou com os profundos, nada abusivos, dramas existenciais Videodrome e Antichrist, que apenas compartilham com o cinema trash a temática extremista, mas tratando suas imagens com uma sofisticação estética e uma tensão ética que supera largamente eventuais sensacionalismos; ou com filmes de terror do tipo insuportável destinado ao nicho dos cinéfilos doentios, cada vez mais bem produzidos devido ao seu sucesso junto ao público adolescente, que se tornou especialmente perverso graças à mamãe Internet, que o alimentou desde bebezinho com toneladas de pornografia, teorias de conspiração, anti-imperialismo, músicas pop raivosas e vulgaridades de todo tipo.

Na verdade, o único interesse no caso da censura a A Serbian Film, obra que tanto fascina críticos e cinéfilos brasileiros (provavelmente excitados com a sodomização em série de mulheres peladas, em cenas inspiradas na pornografia bizarra e nos míticos snuff films), está no fato de que o artigo 241-C do Estatuto da Criança e do Adolescente proibe qualquer representação visual de sexo (real ou simulada) com crianças e adolescentes e condena à prisão não apenas quem produz esse material como também quem vende, expõe à venda, disponibiliza, distribui, publica, divulga, adquire, possui ou armazena o material produzido:

Art. 241-C. Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008).

Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008).

Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, disponibiliza, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire, possui ou armazena o material produzido na forma do caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008).

[…]

Art. 241-E. Para efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão “cena de sexo explícito ou pornográfica” compreende qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)

Ao que parece, o artigo foi aprovado após as revelações escabrosas da CPI da pedofilia conduzida pelo senador evangélico Magno Malta e seu texto enquadra de modo abrangente toda e qualquer representação fílmica da pedofilia (pouco importando se as cenas de estupro de crianças no filme – pornográfico ou artístico – sejam reais ou encenadas – com atores anões, bonecos mecânicos ou montagem de planos). Como o Estatuto dá base legal à proibição de um número infinito de filmes – pornográficos e  artísticos, a verdadeira questão, angustiante ao extremo, é: devemos acatar ou reformar o Estatuto da Criança e do Adolescente? Como distinguir um filme que denuncia a pedoflia utilizando essas representações de outros que utilizam essas representações e mesmo a suposta denúncia delas para explorar o voyeurismo pedófilo? Devem ser totalmente proibidas ou liberadas as representações do abuso sexual de menores, de  adolescentes a recém-nascidos? Não arriscamos, ao liberar essas representações degradantes ao extremo, abrir uma Caixa de Pandora? Não arriscamos, ao proibir essas representações degradantes ao extremo, abrir outra Caixa de Pandora?

Os que atacam furiosamente a censura ao filme não querem assumir o fato de estarem lutando, indiretamente, pela liberação das representações de abuso sexual de menores e de adolescentes. Querem a liberação do filme, vetado em nome dessas representações, mas não querem parecer favoráveis a essas representações, que desejam ver e divulgar como opção de entretenimento adulto, para cultura e informação, prazer estético e prazer erótico. Querem apenas que toda a população adulta possa ver o filme escabroso, sem examinar o caso à luz do Estatuto da Criança e do Adolescente, que permite a censura aos filmes que representem a pedofilia. É uma atitude bem brasileira: a lei existe, mas não deve ser aplicada; se necessário, deve ser aplicada, mas só contra os inimigos. Como a apreensão do filme foi instigada pelo DEM, o “inimigo” das forças progressistas, com base no Estatuto, esse passou a ser ignorado no debate: recordar sua existência é algo que “não vem ao caso”.

Para os poucos críticos que tentaram pensar o veto em relação ao Estatuto, a lei não poderia escolher um caminho que prejudicasse, de forma gravosa, outros princípios constitucionais (liberdade de expressão, acesso à informação, proibição da censura). Mas o mesmo argumento poderia ser usado a favor da proibição do filme: a lei não pode escolher um caminho que prejudique, de forma gravosa, o Estatuto da Criança e do Adolescente  (proibição da participação de criança em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual). Cabe lembrar aqui que um dos motivos da apreensão de Salò na Itália, à época, resultando em processo contra o produtor do filme, Alberto Grimaldi, foi a alegação de que alguns rapazes que atuavam nas cenas que representavam cenas de violação sexual, coprofagia e tortura seriam menores de idade, embora parecessem mais velhos.

No caso de A Serbian Film não são sequer adolescentes crescidos (e sexualmente experimentados, embora a hipocrisia social prefira imaginar a adolescência como idade desprovida de desejo sexual), mas meninos que atuam em cenas de cunho pornográfico, ainda que encenadas ou editadas. Neste sentido, outros filmes que fizeram sucesso no circuito comercial há alguns anos, arriscariam também a ser enquadrados no novo artigo: Happiness (Felicidade, 1998), de Todd Solondz; Mystic River (Sobre meninos e lobos, 2003), de Clint Eastwood; Mysterious Skin (Mistérios da carne, 2004), de Gregg Araki, para citar apenas alguns exemplos de filmes não pornográficos, ou considerados artísticos, que trazem cenas, deprimentes ao extremo, de sedução e estupro de meninos. Contudo, a Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) repudiou o veto do filme no Festival de Cinema Fantástico do Rio (RioFan) sem qualquer referência ao Estatuto que o respaldava:

  • “[…] O filme seria exibido pelo RioFan na sala Caixa Cultural. Porém, os organizadores do festival foram obrigados a retirá-lo da programação por decisão da diretoria da Caixa Econômica Federal, conforme nota divulgada pela assessoria de imprensa do banco, sob alegação de que a instituição ‘entende que a arte deve ter o limite da imaginação do artista, porém nem todo produto criativo cabe de forma irrestrita em qualquer suporte ou lugar’. Em resposta, a organização do RioFan se disse ‘contra qualquer forma de censura’ e informou que todos os filmes selecionados para o festival foram avaliados por órgãos oficiais competentes e têm classificação etária de 18 anos. A Abraccine defende a liberdade de expressão cinematográfica e o direito de os espectadores interessados assistirem aos filmes que lhes convêm, acreditando não caber a instituições públicas ou privadas a definição sobre o que deve ou não ser visto. A responsabilidade sobre programação e observação à classificação etária de filmes apresentados num festival de cinema é da organização do evento, devendo a ela serem dirigidas eventuais questões controversas, sem, para isso, ser utilizado o ato de censura prévia (inexistente no país) a um determinado trabalho artístico. Registramos ainda que A Serbian Film já teve pelo menos outras duas exibições anteriores ao RioFan: no I Festival Internacional Lume de Cinema (São Luís, no Maranhão) e no VII Fantaspoa – Festival Internacional de Cinema Fantástico (Porto Alegre, no Rio Grande do Sul). Por esta nota, deixamos ainda claro que a Abraccine não está defendendo um trabalho ou um festival em específico, mas um princípio: o de um filme poder ser assistido e avaliado pelo espectador com liberdade.”

É discutível se os organizadores de um evento financiado por uma empresa através das Leis de Incentivo podem exibir seja o que for num espaço cultural que não lhes pertence: no caso, no espaço cultural da Caixa Econômica Federal, que não quis ver seu nome associado à exibição de um filme que exibe uma série insuportável de cenas de estupro de mulheres, crianças e bebês. A partir dessa “proibição” da empresa que financiava o festival que havia programado A Serbian Film, o meio cinematográfico brasileiro passou a questionar o poder adquirido pela empresa nacional com as Leis de Incentivo. Uma empresa não poderia “proibir” os filmes programados para seus espaços culturais por produtores independentes: isso constituiria censura, proibida pela Constituição brasileira.

Talvez imaginando que haveria mais liberdade se fosse o Estado a financiar a produção cultural (como na Alemanha nazista ou na Rússia comunista), os críticos do poder das empresas passaram a contestar esse patrocínio: nem seriam as empresas as financiadoras dos “seus” filmes e das “suas” mostras, e sim o dinheiro público, isto é, o Estado, já que a verba provinha da renúncia fiscal. De fato, como inexiste indústria de cinema no Brasil, os cineastas brasileiros ainda dependem de modo direto ou indireto do Estado. A única tentativa de se criar uma indústria de cinema no Brasil, nos moldes capitalistas, foi a Vera Cruz. Essa tentativa foi bombardeada, em primeiro lugar, pela administração interna corrupta; em segundo lugar, pelo criticismo dos revolucionários do Cinema Novo contrários ao modelo capitalista “hollywoodiano”; e, em terceiro lugar, pelo boicote de setores de Hollywood ocupados em combater toda e qualquer concorrência.

A ditadura militar criou a Embrafilme, privilegiando um grupo de cineastas remanecentes do Cinema Novo. Com o fim da ditadura, e o advento do neoliberalismo, a Embrafilme foi extinta pelo governo Collor. A após um ano sem qualquer produção de filmes no Brasil, este mesmo governo criou a Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei nº 8.313 de 23 de dezembro de 1991), conhecida por Lei Rouanet, seguida por outras Leis de Incentivo à Cultura. Essas leis guardam um caráter “semicomunista” e “semicapitalista”, pois não se enquadram nem no modelo comunista, onde a produção do cinema torna-se monopólio do Estado, nem no capitalista, onde a indústria do cinema se sustenta na bilheteria, num jogo duro, mas fortalecedor (vide o cinema americano). A lógica do mercado exclui, contudo, os cineastas que só querem “se expressar’’, sem tratar de agradar o público pagante (dando-lhe pelo menos um pouco daquilo que ele espera receber ao entrar na sala de cinema). Por isso os cineastas brasileiros preferem se escorar nas bengalas fornecidas pelo Estado, pois com elas podem “se expressar” à vontade, com total desprezo pelas expectativas do público.

É inegável que o fim da Embrafilme e a adoção das Leis de Incentivo renovaram o panorama do cinema brasileiro, até então um feudo dominado pelos mesmos cineastas de sempre: dezenas de novos cineastas puderam revelar seus talentos no chamado “CInema da Retomada”. Mas o cinema brasileiro continua a depender de leis protecionistas e de leis de incentivo, as duas bengalas fornecidas pelo Estado. Ora, a renúncia fiscal da empresa é uma opção da empresa, que pode adotar ou não esse modelo: o saque fiscal, que se dará de qualquer modo pelo Estado, pode ser ou não revertido em produções culturais, que fazem propaganda da marca da empresa. Mas o que dizer do lucro líquido que o cineasta arrecada na bilheteria? A renda do filme não deveria ser então em sua maior parte re-apropriada pelo Estado-produtor? Essa é uma questão interessante que os cineastas brasileiros, que geralmente reclamam de tudo, evitam cuidadosamente discutir.

O caso de A Serbian Film transcende, contudo, o cenário nacional e suas problemáticas específicas. O filme chegou ao Brasil após uma longa trajetória de censura – e não em países atrasados e ditatoriais, mas em países onde vigora a plena democracia. Ele foi parcialmente vetado na Inglaterra (onde só foi liberado com 49 cortes) e integralmente vetado na Noruega e na Epanha, onde foi excluído da programação da XXI Semana de Cine Fantástico y de Terror. Quando Ángel Sala, diretor do Festival de Sitges decidiu apresentá-lo em outubro de 2010 numa sessão para adultos foi processado por exibição de pornografia infantil após denúncia de uma organização católica. Na Sérvia, o Ministério Público sérvio abriu uma investigação para saber se o filme violava as leis do país relativas à proteção de menores. O diretor tem usado a estratégia dos festivais marginais de cinema para tentar cavar, através da polêmica, exibições comerciais para seu filme extremista, que de outro modo seria visto apenas pelo nicho dos trashmaníacos via Internet (o site oficial do filme oferece um link para o download da “única versão integral sem cortes”). Contudo, ignorando as reações adversas ao filme em toda a Europa, e mostrando-se preocupado com “a volta da censura no Brasil”, como se o veto fosse uma excrescência nacional, o Congresso Brasileiro de Cinema (CBC) publicou um Manifesto dirigido “ao povo brasileiro”:

  • “[…Manifestamos] total REPÚDIO a ATOS DE CENSURA à exibição de obras audiovisuais que, contrariando frontalmente o disposto na CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA, infelizmente vêm se multiplicando por todo o país e que, neste momento manifesta-se em sua forma bárbara e virulenta através das consecutivas proibições da exibição do filme A Serbian Film – Terror sem limites na cidade do Rio de Janeiro, primeiramente no Espaço Caixa Cultural, dentro da programação da RioFan2011 – por veto da Caixa Econômica Federal, empresa patrocinadora do evento – e logo a seguir, momentos antes de sua pré-estréia no Cine Odeon, por determinação judicial exarada pela juíza Jatahy Nygaard, da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso do Rio de Janeiro, originária de ação movida pelo Diretório Regional do PARTIDO DEMOCRATAS, quando para além da mera proibição da exibição do filme, lembrando os mais obscuros e dolorosos tempos da ditadura, sem qualquer base legal, já que sem amparo até mesmo na determinação judicial exarada, desembocou na ação de “seqüestro” da cópia em 35mm da obra. Acerca destes ATOS DE CENSURA, merece registro que o mesmo filme, após ter se submetido a todos os trâmites legais impostos pela Ancine e pelo Ministério da Justiça, inclusive no que diz respeito à classificação indicativa, estabelecida pela Portaria 3.203, de 8 de outubro de 2010, já havia sido exibido sem qualquer problema de ordem legal e sem causar quaisquer danos sociais, nas programações do Fantaspoa – Festival Internacional de Cinema Fantástico, realizado na cidade de Porto Alegre (RS) e do Festival Internacional Lume de Cinema, realizado na cidade de São Luís (MA). Neste contexto, julgamos ainda mais preocupante de [sic] que estes ATOS DE CENSURA estejam ocorrendo justamente na cidade do Rio de Janeiro, que sempre foi tida por grande parte dos brasileiros como sendo “CAPITAL CULTURAL” do país. E que por conta do poderio de suas empresas midiáticas faz com que os acontecimentos locais tenham repercussão nacional. É também necessário o registro de que às [sic] PROIBIÇÕES / ATOS DE CENSURA acima mencionados foram determinadas por “autoridades” que sequer assistiram a obra CENSURADA e que, portanto, por não terem o conhecimento prévio acerca do seu real conteúdo, na prática, utilizaram de seus poderes de maneira no mínimo discricionária, desproporcional e inaceitável dentro do ESTADO DE DIREITO, e atenderam apenas as [sic] provocações e pressões exercidas por forças que sempre relutaram em aceitar a plena vigência da DEMOCRACIA, esquecendo que a LIBERDADE DE EXPRESSÃO e de PLENO ACESSO A [sic] INFORMAÇÃO E A [sic] CULTURA são direitos humanos inalienáveis e fazem parte das cláusulas pétreas de nossa CONSTITUIÇÃO, não podendo, portanto, serem submetidas aos interesses de grupamentos partidários. Assim, neste momento de perplexidade e indignação, o CBC – CONGRESSO BRASILEIRO DE CINEMA renova seu REPÚDIO a todo e qualquer ATO DE CENSURA e conclama a todos os brasileiros a se manifestarem e LUTAREM CONTRA A VOLTA DA CENSURA ou quaisquer outras atitudes desta natureza, que colocam em risco a própria essência da DEMOCRACIA e o pleno exercício dos direitos de cidadania. Renova ainda seu ALERTA para o fato que [sic], pelos mais variados e sempre injustificáveis motivos, tais atos vem [sic] perigosamente se ampliando e se espalhando por todo o país. E precisam encontrar resistência para que as exceções não acabem transformando-se em regra geral. PELA LIBERDADE DE EXPRESSÃO! PELO RESPEITO À CONSTITUIÇÃO FEDERAL! PELA MANUTENÇÃO DA LEGALIDADE E DO ESTADO DE DIREITO! PELO DIREITO DE PLENO ACESSO A [sic] INFORMAÇÃO E A [sic] CULTURA! BRADAMOS TODOS COLETIVAMENTE: ABAIXO A CENSURA! FILMES FORAM FEITOS PARA SEREM VISTOS E NÃO CENSURADOS!”

O tom estudantil do Manifesto soa patético em sua não muito velada motivação político-partidária contra a ação inspirada pelo Partido dos Democratas (DEM), que representaria “as forças que sempre relutaram em aceitar a plena vigência da DEMOCRACIA”. Mas a indignação contagiosa conseguiu mobilizar uma massa de 150 de cinéfilos que foram protestar, revoltados contra o veto, na porta do Cine Odeon. Nessa manifestação de tipo estudantil, destoou a declaração elegante e respeitosa do cineasta Eduardo Escorel ao jornal O  globo: “O ideal seria que a liberdade de expressão fosse um princípio primordial e absoluto, não sendo sequer admissível haver ações judiciais dessa natureza nem decisões restritivas a toda e qualquer forma de livre manifestação. Como estamos longe, porém, de viver em um mundo ideal, constituído apenas por instituições e indivíduos responsáveis, devemos reconhecer os benefícios de existirem instâncias às quais possam recorrer aqueles que considerem que suas crenças e valores tenham sido ofendidos, agredidos ou desrespeitados.” Mas o tom raivoso de protesto estudantil retornou na carta aberta lançada pela Associação dos Roteiristas, na qual se “repudia imensamente” a proibição da exibição do filme e a apreensão de sua cópia:

  • “[…] Tal atitude não acontece no Brasil desde 1984, quando questão semelhante censurou o filme Je Vous Salue Marie. Contudo, devemos lembrar que desde 1988 vigora no Brasil uma Constituição que é plena na defesa da liberdade de expressão e na proibição de atos de censura. […] Acreditamos plenamente que a arte deva ser livre e sem freios de qualquer natureza para o seu desenvolvimento. Ao se propor a discussão profunda da condição humana, nem sempre a arte resulta em uma obra leve e agradável e sim num retrato espantoso dos limites do ser humano. Acreditamos ainda que nenhuma obra de arte se realiza completamente sem a exposição e apreciação de um público. Os filmes só se finalizam a partir da recepção do espectador, que torna a obra viva, ainda mais rica de significações e implicações, além de promover um poderoso debate para a sociedade. Privando o público de uma obra de arte, nós autores-roteiristas nos sentimos atingidos e ofendidos, já que nosso texto necessita desse espectador para o fechamento de um círculo de apreciação. Infelizmente, apesar do espanto que nos causou a censura e a apreensão da cópia, entendemos que não se trata de um fenômeno pontual e isolado no país. Atitudes que vão contra a liberdade de expressão de artistas e cidadãos, como a proibição de marchas, atitudes homofóbicas, dubiedades intrínsecas no processo de classificação indicativa, etc. já eram cenas que vinham preparando a explosão desse clímax. É necessário então propor um desfecho para essa trágica narrativa que vai muito além do repúdio às atitudes dos cidadãos envolvidos nesse ato de censura. É urgente e necessário rediscutir, revalorizar e difundir os princípios de liberdade e de expressão que já fazem parte do documento mais importante que orienta a sociedade do nosso país.”

Aqui A Serbian Film – um filme destinado apenas aos cinéfilos de estômago forte e duvidoso gosto pós-moderno – ganha o estatuto de uma “obra de arte”, ou seja, uma fonte de nobre prazer estético, e de cuja contemplação ninguém deveria ser privado. E ocultando as reais razões do veto, o caso passa a ser associado à proibição de Je Vous Salue Marie. Mas não se trata de “questão semelhante”. A censura extemporânea ao casto e aborrecido filme de Godard, que imaginou uma virgem contemporânea chamada Maria, casada com um taxista, e que engravida sem sexo, deu-se no primeiro governo civil logo após a ditadura, de José Sarney, e foi inspirada pela Igreja católica, que se sentiu ofendida pela  suposta blasfêmia. Foi uma proibição totalmente injustificada, já que o filme até reforçava a possibilidade real de uma concepção sagrada.

Mas os que haviam lutado contra a censura da ditadura militar e se supreenderam com aquele aparente recuo, não chegaram a definir a proibição do filme de Godard como um “ato de barbárie e virulência”, como hoje, numa democracia plena, os nostálgicos da luta contra a ditadura definiram o veto ao nada casto A Serbian Film, que trata de estupros de mulheres, crianças e bebês, sem qualquer respeito à dimensão do sagrado. É que a esquerda brasileira, há mais de uma década no poder, ressente a falta de “inimigos” para degolar, encarando qualquer ação de fundo político das oposições agonizantes (como o DEM), como “atos de barbárie e virulência”. Assim, os protestos da esquerda contra a “a volta da censura” no governo de esquerda que apoiam adquirem um tom paródico e rançoso, esganiçado e distorcido, como um disco arranhado que a agulha insiste em tocar, retornando sempre às linhas quebradas no mesmo ponto, de modo irritante.

Como observou Alcebiades Diniz,  A Serbian Film segue “certa ‘orientação’ ideológica de filmes sérvios recentes, como Bela aldeia, bela chama, nos quais aspectos do genocídio perpetrado pela Sérvia ganham fabulação fantástica e violenta nas telas, provavelmente para defender/desculpar os assassinos genocidas como objetos inconscientes do Mal)”. Exaltada em sua indignação, a crítica acabou elevando o filme à “mesma estatura de um [filme de] Pasolini ou de Paradjanov (só para citar dois artistas de verdade, impiedosamente perseguidos e até condenados por suas obras de arte extremistas) – um absurdo (para não dizer imbecilidade) dos mais evidentes.”

De fato, as questões que o filme e sua proibição colocam vão além das discussões a favor ou contra a obra, a favor ou contra sua censura. As pessoas não conseguem mais apreender a realidade devido à rapidez das mudanças, e se agarram a esquemas de pensamento cristalizados e inúteis. Vivemos num mundo onde os extremistas agem livremente e usam a estratégia da liberdade de expressão para difundir seus ideais fascistas, a princípio combatendo todos os “moralistas”, “censores” e “reacionários” que tentam censurá-los, até tornar a sociedade sem defesas, podendo impor então com violência o fim da liberdade, de uma vez por todas. Assim, com a polêmica, A Serbian Film que só tinha sido visto por umas 250 pessoas no Brasil (nos festivais Fantaspoa, de Porto Alegre, e Lume de Cinema, de São Luís – e na sua mutilada versão inglesa), alcançou em poucos dias o número de 3.621 downloads ilegais apenas no site Legendas.tv.

O blogueiro Jefferson Assunção, em A tela do aventurar, condenou elogiando A Serbian Film, por “refletir nossa sociedade violenta”. Bem, tudo reflete tudo: por esse caminho não chegamos a lugar nenhum. Qual a posição política do cineasta que intitula seu filme, de modo nacionalista e “orgulhoso” (mesmo na pretensa crítica de um estilo de vida), como A Serbian Film? Que metáfora é essa que leva um ex-ator pornô e pai de famíla a aceitar, para obter dinheiro e segurança para sua família, rodar um snuff-movie com todo tipo de violência real? Pelas imagens que vi nos diversos trailers liberados na rede pareceu-me que o filme incorpora a “sensibilidade” sérvia para o estupro: durante a guerra da Bósnia, entre 20 mil e 44 mil meninas e mulheres foram sistematicamente violentadas pelas forças sérvias. Em que posição o “artista” se situa no espectro social que sonhava com a Grande Sérvia e empreendeu a limpeza étnica? Posso imaginar a posição política do cineasta quando ele afirma admirar os filmes direitistas de ultraviolência produzidos na esteira da guerra do Vietnã ou quando ensaia críticas veladas à Otan (que tentou impedir a limpeza étnica).

Um dos poucos blogueiros a analisar A Serbian Film criticamente foi Luciano Trigo, em seu blog Máquina de escrever. Foi imediatamente criticado em nome da “liberdade de expressão”.  “Ah, você não viu o filme…”, desdenham os que o viram, como sacerdotes de um culto secreto. Críticos de cinema, cinéfilos e trashmaníacos só querem ver filmes – o mundo que se dane! Não vi A Serbian Film nem pretendo vê-lo. Eu via esses trashes quando tinha meus 15-18 anos. Logo descobri que a vida é curta: prefero gastar o pouco tempo que me resta com coisas boas. Mas o argumento da liberdade de expressão é mesmo irresistível. Evoluindo na Internet como tubarões em alto mar, revisionistas e neonazistas mostram-se há tempos seus mais vigorosos defensores. Eles querem negar abertamente e sem censuras o Holocausto, até que a sociedade perca totalmente a razão e se torne nazista.

Agora, parece que os pedófilos e fascistas sérvios querem também liberdade de expressão para representar de modo chocante a pedofilia e a violência extrema contra mulheres, para com isso se sentirem menos culpados pelo que fizeram durante a limpeza étnica. E contam com o apoio dos críticos de cinema, roteiristas, cinéfilos, trashmaníacos e blogueiros brasileiros, que ecoam, todos, as mesmas diatribes contra a “volta da censura”. Volta da censura no Brasil? Só com o fim da Constituição! Só podemos falar em ações isoladas, abusivas, de empresas e grupos religiosos que apoiaram a candidatura de Dilma Rousseff, com a “Presidenta” eleita, sentem-se agora poderosos pelo respaldo oficial de seus atos arbitrários. Então a fúria contra a “censura” a A Serbian Film parte dos mesmos que apóiam as alianças espúrias de um governo de esquerda com as forças políticas mais reacionárias. Como bem observou Katia Alves, “alguns críticos colocaram a análise na geladeira da ignorância!”.

De fato, a indignação raivosa parece vir mais da marca DEM da “proibição” de A Serbian Film que de um amor sincero pela liberdade de expressão. No Acre, a “proibição” do mesmo tipo que atingiu o curta-metragem Eu não quero voltar sozinho, de Daniel Ribeiro, excluído do Programa Cine Educação, por sua vez excluído de todas as escolas daquele Estado, ao ser confundido com o chamado “kit anti-homofobia(proibido pelo governo depois de produzido por uma de suas secretarias, causando mal-estar na sociedade pela maneira tosca da abordagem da homossexualidade entre adolescentes) não mobilizou nem um centésimo da raiva dos críticos de cinema, trashmaníacos, militantes de esquerda e blogueiros em geral. Talvez porque o Acre não seja o Rio de Janeiro? Ou talvez porque os pós-modernos odeiem mais a proibição de um filme trash extremista sérvio, que representa violências sexuais contra mulheres e estupros de menores, que a proibição de um delicado e sensível filme brasileiro da nova safra, liberta do populismo do Cinema Novo, e que representa o despertar da paixão entre adolescentes do mesmo sexo?

Curioso também que nenhum crítico de cinema no Brasil e no exterior tenha se mobilizado em defesa do grande cineasta Lars von Trier, seja escrevendo manifestos e cartas abertas, seja organizando meetings de protesto, quando este foi declarado persona non grata e expulso de maneira humilhante do Festival de Cannes (com a silenciosa conivência da crítica mundial ali presente). A atitude medieval de Cannes levou ao cancelamento da exibição de Melancholia na Argentina e em outros países, numa censura de novo tipo – e isso apenas por ter o cineasta proferido sem pensar meia dúzia de frases de efeito improvisadas e grotescas, como piadas de mau gosto, de cunho supostamente antissemita e nazista.

Já em relação à prisão de Roman Polanski na Suíça houve alguma solidariedade de classe (da parte de cineastas europeus e americanos, mas nenhuma da classe cinematográfica brasileira). A simpatia por Polanski entre os progressistas do meio deve-se ao fato de o diretor ser, por um lado, judeu (a comunidade judaica é solidária), e por outro, ser perseguido pelo odiado país dos “moralistas estadunidenses” (segundo a lógica que reza que o inimigo do meu inimigo é meu amigo). Nos EUA constitui um crime a relação sexual com adolescentes, ainda que essa relação tenha sido consentida e mesmo que, como foi o caso, a vítima, décadas depois, tenha perdoado seu suposto agressor – suposto, pois uma adolescente que não é mais virgem não vai desacompanhada à festa de arromba na mansão de um cineasta de Hollywood com a intenção de tão somente beber refrigerante e beliscar canapés. O sexo realizado sob o efeito de álcool e drogas ocorreu na festa-orgia como se poderia prever, para não dizer de modo consentido, embora abusivamente descrito pelas mídias como um caso inquestionável de estupro e pedofilia.

Motivadas pelas contradições dos que protestam contra o veto a A Serbian Film, essas minhas simples reflexões foram postadas ainda em forma incipiente de ideias mal esboçadas, na página de um crítico de cinema no Facebook, que promovia uma campanha de protesto ao veto na rede social que incluía muitos jornalistas engajados na causa. Minhas observações irritaram a tal ponto o dono da página que ele ameaçou censurar minhas postagens: “Nazario, se você não tiver nada a realmente acrescentar ao debate, em vez de ficar soltando rancores, quem vai praticar censura aqui serei eu.” O nível de tolerância pessoal dos militantes que defendem a liberdade ilimitada na arte revelou-se aí bastante baixo, deixando dúvidas sobre a lisura de sua causa. Meus limites também são restritos, mas sem a hipocrisia dos arautos da liberdade absoluta de expressão: editei o jornalista antes que ele me censurasse, graças ao adorável recurso “editar amigos” do Facebook. Enfim, as manifestações contra a censura são meras agitações político-partidárias, evitando abordar as questões essenciais. Pois para  evitar a nova censura seria preciso acabar com as Leis de Incentivo à Cultura, reformular o o artigo 241-C do Estatuto do Menor e do Adolescente e suprimir a Classificação Etária instituída pelo governo Lula – os três instrumentos que permitiram legalmente o veto ao filmezinho sórdido no Brasil “sem Censura”.

Aos que insistem em qualificar o filme como uma obra de arte: prefiro a definição que Elsa Morante deu para a arte em seu ensaio “Sobre o romance” em A favor ou contra a bomba atômica: “Não me lembro mais que crítico inteligente disse que se pode reconhecer uma verdadeira obra de arte assim: ela provoca sempre no leitor ou no espectador um aumento de vitalidade […] Uma verdadeira obra de arte […] é sempre revolucionária: porque ela provoca um aumento de vitalidade, justamente. É por isso que todos os reacionários de todos os partidos preferem a arte falsa, que não provoca senão o sono bem-vindo da razão; e, em certos casos, ele poderá mesmo ser bastante forte para provocar um colapso.”

As pessoas que viram A Serbian Film saíram perturbadas do cinema e confundiram essa perturbação com o efeito que a arte verdadeira provoca. Mas esse filme perturbador não aumenta a vitalidade, o outro efeito que a verdadeira arte deve causar. O filme perturba a todos, mas não revitaliza ninguém. Pior – ele diminui a vitalidade de quem o assiste: “que porcaria de filme”, “eu me senti sujo”, “quero esquecer logo”, etc. Ninguém sai de A Serbian Film mais inteligente e revitalizado, antes mais burro e embrutecido. É bem diferente da perturbação causada por um filme de arte, mesmo um filme de arte extremista, que, além das imagens-choque – discutíveis -, traz um diagnóstico preciso e gráfico de realidades terríveis, como o fascismo, o nazismo, os campos de concentração, as sociedade totalitárias, etc.

À diferença de um Salò (Salò), de um Novecento (1900), de um Clockwork Orange (Laranja mecânica), de um État de siège (Estado de sítio), de um La confession (A confissão), de um Schindler’s List (A lista de Schindler), de um Dogville (Dogville), etc. e à diferença até dos filmes fracassados nesse intento, como Caligula (Calígula) – ao qual o produtor pornô enxertou cenas de sexo explícito -, A Serbian Film não traz nenhuma reflexão válida sobre qualquer realidade, a não ser que se considere pertinente a explicação da Limpeza Étnica praticada pelos sérvios pela “hipnose” exercida pelos líderes metaforizada na droga injetada no ator que comete as atrocidades como uma “vítima inocente” do diretor do snuff film, segundo declarou o diretor para os culturetes que buscavam uma razão qualquer que justificasse a existência de seu filme.

Ora, essa “reflexão” sem nexo, insustentável, sem qualquer base lógica e histórica, não passa, pois, de ums forma da propaganda fascista que procura retirar dos indivíduos o livre arbítrio, a capacidade de decidir por si mesmo e a responsabilidade de seus atos. E é claro que nada disso tem relação com a censura ao filme: por ser uma nulidade cinematográfica, o diretor recorreu ao bem conhecido arsenal de sons e imagens nauseantes para provocar as sociedades contemporâneas, que tentam proteger a infância da violência sexual: tendo seu filme censurado como previsto e projetado, o diretor conseguiu destacar-se da massa da produção do cinema-lixo, tornando-se alguém no mundinho medíocre da indústria do gore