Omaret Yacoubian (O Edifício Yacoubian, Egito, 2006): clichês da homosssexualidade
Omaret Yacoubian (O Edifício Yacoubian, Egito, 2006, 165’, cor, drama, falado em árabe). Direção: Marwan Hamed. Roteiro: Marwan Hamed, com base no romance de Alaa Al Aswani. Fotografia: Sameh Selim. Com Adel Iman, Nour El-Sherif, Khaled Sawy, Yossra, Mohamed Imam, Hind Sabri.
Construído em 1930, o Edifício Yacoubian foi um dos mais charmosos do centro do Cairo, e outrora um marco de elegância e requinte, onde moravam “até judeus”. Depois da ditadura de Abdel Nasser, com a fuga dos judeus e a mudança de governo, o prédio foi ocupado por militares, cujas esposas criavam galinhas no telhado, iniciando a decadência do prédio, hoje habitado por uma fauna de todas as classes sociais – os ricos remanescentes nos luxuosos apartamentos e os pobres na favela instalada no telhado.
Um ex-engraxate enriquecido com o tráfico de drogas escolhe uma segunda esposa para com ela fazer sexo, já que a esposa atual não responde à sua tara de velho. Ele também quer tornar-se um político corrupto, mas cai em armadilhas de políticos ainda mais espertos, e mais corruptos, ficando na dependência desses gângsteres, intimamente ligados à polícia e ao sistema judiciário. O decadente Paxá Zaki (Iman) tenta manter a dignidade enquanto visita a elegante ex-amante cantora ocidentalizada e seduz garçonetes vagabundas de bares populares, que lhe dão golpes, até ser expulso de casa pela irmã gananciosa e histérica, que deseja apossar-se de seus bens e propriedades.
A bonita pobretona Bothayna precisa ceder às nauseantes investidas sexuais de seus sucessivos patrões para sustentar a família. Depois de romper com o namorado, que se converte ao islamismo radical, ela se deixa seduzir pelo Paxá. Já o ex-namorado, que sonhava em ser policial, depois de ser rejeitado na academia por ser de família pobre, participa de manifestações de protesto islâmico pela limpeza do país e acaba sendo torturado e estuprado numa delegacia, convertendo-se então num terrorista suicida. O jornalista Hatem (Sawy), que se tornou homossexual na infância ao ser abusado por um criado, usa seu dinheiro para seduzir um policial pobre, casado e pai de um filho pequeno.
Pintando uma série de caracteres e acompanhando suas atividades dentro e fora do Edifício Yacoubian, o filme transforma o prédio num microcosmo do país, dividido entre a decadência dos costumes em meio a um arremedo de democracia e o terrorismo islâmico que cresce prometendo limpeza geral. Baseado no romance homônimo de Alaa Al Aswani, um best-seller local, o filme teve um orçamento de US$ 6,7 milhões, tornando-se o filme mais caro da história do cinema árabe.
O simples fato de o roteiro de O Edifício Yacoubian ter sido aprovado causou sensação no Egito, o maior país produtor e exportador de cinema e TV do mundo árabe. Mas dificilmente este filme será exportado para o resto do mundo islâmico devido ao tema polêmico. Se os árabes beijam-se, andam de mãos dadas e dormem na mesma cama, essas intimidades não são consideradas sinais de homossexualidade. Por isso muitos estrangeiros viajam ao Egito e ao Marrocos em busca de sexo com homens que não se consideram gays por isso. São aqueles identificados como efeminados que sofrem todo tipo de repressão: de penas leves no Líbano (onde foi fundada a Helen, primeira associação de homossexuais do mundo árabe e cuja presidente, Ghassan Makaren, luta pelo reconhecimento da cidadania) à pena de morte na Arábia Saudita, por exemplo.
Também no Egito a homossexualidade é crime: em 2002, a polícia invadiu um restaurante-barco no Nilo usado como ponto de encontro gay prendendo 52 homens, 21 dos quais foram condenados a três anos de prisão. Os gays muçulmanos citam em seu favor uma passagem do Alcorão que reporta ter havido em Medina uma casta de efeminados que cantava para Maomé. Mas para os líderes religiosos, todo e qualquer desvio do caminho sagrado da sexualidade reprodutiva é errado e anormal.
O ator Khaled Sawy observou ao jornalista Paulo Cabral: “É verdade que temos censura. Quando estamos produzindo uma obra de arte sabemos que há um teto que não pode ser ultrapassado. […] Mostrar cenas muito explícitas de corpos se tocando e de beijos – principalmente entre dois homens – ultrapassaria em muito o teto, não só da censura como também da sensibilidade do público egípcio. Nós estamos mostrando neste filme o amor homossexual completo, de maneira nunca antes exposta no cinema árabe. Mas o que queremos mostrar é todo o lado do sentimento e do amor e não necessariamente dois homens na cama. Queremos que as pessoas assistam ao filme e saiam de lá pensando. Não queremos que ninguém saia do cinema no meio do filme fisicamente chocado com o que viu.”
Mesmo assim, 112 deputados egípcios exigiram cortes no filme. O diretor ameaçou retirar as cópias em exibição nos cinemas se isso ocorresse, o que levou a uma corrida do público às salas, provocando recordes de bilheteria. Após o sucesso local, o reconhecimento internacional: em 2006, o filme conquistou o Grande Prêmio de Longa-Metragem na 8.ª Bienal de Cinema Árabe em Paris; o Prêmio de Melhor Diretor Estreante nos Festivais de Tribeca e Montreal e de Melhor Ator (Adel Imam) na Mostra de São Paulo.
O filme não toma, aparentemente, nenhuma posição. É como se espiasse por cima de um muro uma vida podre desenrolando-se no Cairo, sem condenar esse ou aquele personagem. Essa falsa neutralidade é obtida através de uma técnica corrosiva: todos os personagens caem em tentação; todos tentam enganar o próximo; todos possuem uma sexualidade mórbida; todos são antipáticos, corruptos, repugnantes. Apenas a ex-amante do Paxá, que canta músicas ocidentais num restaurante de luxo escapa dessa pocilga humana. Mas o destino reserva a outros dois personagens – e apenas a eles – um final feliz: depois de passar o filme atrás de moças vulgares e enchendo a cara, dizendo-se diz o último gentleman do Egito, o Paxá encontra sua cara-metade na jovem pobretona Bothayna, que desiste de dar-lhe um golpe e aceita o enrugado “príncipe encantado” que promete levá-la a Paris: os dois são redimidos pelo casamento no final.
Já o policial pobre seduzido pelo rico jornalista gay purga-se de sua queda na degeneração deixando o Cairo e voltando para sua aldeia com a esposa – que ele surrava e violentava de vez em quando – depois que o filho menor morre de febre enquanto ele dormia com o jornalista. Este, infeliz com a partida do amante, volta a caçar na rua até encontrar a morte de forma violenta, estrangulado na cama, quando se oferecia para ser penetrado por um desconhecido que lhe rouba o relógio de ouro e outros pertences. Também o terrorista islâmico termina os dias violentamente, crivado de balas durante um atentado em que mata o policial que o torturou na delegacia e o entregou aos estupradores. Assim, de certa forma, ao romper pretensamente um tabu no cinema árabe, Omaret Yacoubian apenas confirma para o mundo islâmico a homossexualidade como o Mal.