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O CINEMA ERRANTE DE FAUSTO FUSER

fausto

Diretor, crítico de teatro, pesquisador, doutor e mestre em artes, Fausto Fuser contribuiu de modo notável para a formação de artistas do teatro brasileiro, como professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, onde lecionou as disciplinas de Improvisação, Interpretação, Iluminação, Direção, Projetos Teatrais e Crítica.

Entre 1964 e 1970, Fausto Fuser estudou Cinema e Teatro na Escola Nacional Superior de Cinema da Polônia, a Filmówka, na Ulica Targowa (Rua do Mercado), na cidade de Lodz, que, ao contrário de Varsóvia, não foi alvo dos bombardeios nazistas devido à sua indústria têxtil, que interessava aos alemães.

Fuser escreveu um relato fascinante sobre sua formação na Filmówka de Lodz: seus cursos e professores, as intrigas internas, os dissabores que os artistas provavam no regime comunista, as filmagens que ele pode, com grande esforço, empreender, e os resultados de seus exames.

Numa narrativa deliciosa, evocativa, nostálgica, Fausto Fuser registra de forma viva e emocionante o dia a dia da escola onde grandes cineastas como Andrej Wajda, Roman Polanski, Jerzy Skolimowski, Andrej Munk, Krzysztof Zanussi, Krzysztof Kieślowski e Zbigniew Rybczyński deram seus primeiros passos.

Esse texto antológico, intitulado “Relatos poloneses ou Na Polônia e uma Laranja”, foi publicado pela revista PesquisAtor, n. 2/2013, da USP, e pode ser lido aqui: http://www.revistas.usp.br/pesquisator/article/view/56400.

Na Escola de Cinema de Lodz, uma parte importante dos trabalhos escolares constituía-se na realização de curtas-metragens, ali chamados de “estudos”. Fausto realizou quatro “estudos” em Lodz, que seu filho conseguiu milagrosamente, décadas depois, recuperar e trazer para o Brasil:

Noz (A faca, Polônia, 5’ 37’)’. Um operário polonês regressa bêbado para casa, à noite, depois do trabalho pesado. Nem consegue jantar. A menina tem pesadelo com o acontecido e, na manhã seguinte, a caminho da escola, livra-se do problema menor embalada por uma bossa-nova na rua principal de Lodz. 

Carmem (Carmem, Polônia, 5’ 07’’). Cantora do coral do Grande Teatro de Ópera de Lodz, na Polônia, reclama de ter sido traída pelo “sistema”, enganada com a promessa de participar de forma igualitária dos papéis de solista nas óperas. Ela faz parte do coro que espera, na coxia, atrás do cenário, o momento de cantar o encerramento da ópera. Com a morte da solista no palco, ela tem a chance de se transformar em Carmem.

Gniady (O pangaré, Polônia, 11’ 05’’). Um velho leva seu inútil pangaré para o sacrifício, em meio a recordações mais felizes, entre cavalinhos-bailarinos e sua bela treinadora, no circo da infância, distante-e-presente. No embate com a dura realidade, recusa-se a entregar os pontos.

Wluczega (O vagabundo, Polônia, 21’30’’). Desesperado por não poder sustentar a família em dificuldades um desempregado vaga pelos campos à procura de um trabalho. Mete-se em complicações com a sociedade, sonhando em partir em liberdade com os pássaros. Adaptado do conto homônimo de Guy de Maupassant.

Os filmes foram exibidos em 2008 no Centro Brasileiro Britânico, em São Paulo, de cujo programa eu retirei as sinopses acima. Provavelmente foram ainda exibidos em outras ocasiões, furtivamente. Nunca pude vê-los. Mas não seria uma ótima ideia lançar essas raridades – o cinema errante produzido por um talentoso estudante brasileiro na Polônia – num DVD? Fica a dica…

PETER JACKSON

5A0

The Hobbit: The Desolation of Smaug (O Hobbit: a desolação de Smaug, 2013). Direção: Peter Jackson. Roteiro: Fran Walsh, Philippa Boyens e Guillermo del Toro.

Segunda parte, depois de The Hobbit: The Unexpected Journey (The Hobbit: uma jornada inesperada, 2012), da nova trilogia de Jackson passada na turbulenta Terra-Média, numa adaptação de O Hobbit (1937), de J. R. Tolkien.

Doze anões (Balin, Bifur, Bofur, Bombur, Dori, Dwalin, Fili, Gloin, Kili, Nori, Oin, Ori), liderados por Thorin (Richard Armitage) e secundados pelo corajoso hobbit Bilbo Bolseiro, que agora detém o anel “precioso”, que o torna invisível, tentam retomar a terra natal dos anões, dominada por forças malignas.

Kili (Aidan Turner), o anão mais alto e bonito, conquista a elfa Tauriel (Evangeline Lilly), para desgosto do elfo Legolas (Orlando Bloom), que a deseja. O mago Gandalf (Ian McKellen) enfrenta o demônio, que anula seus poderes. E tentando matar o Dragão (Benedict Cumberbatch), os anões só conseguem levá-lo a desejar destruir a cidade ao pé da Montanha Solitária.

Curiosidade: para dar movimento ao Dragão (via mocap), Cumberbatch comprimia pernas e pés e se arrastava no chão apoiado nos cotovelos usando as mãos como garras, enquanto articulava pescoço e ombros de forma exagerada.

O filme é longo – três horas – mas tem sequências muito boas: o ataque das aranhas gigantes, as diversas lutas contra os orcs, o despertar do Dragão, que se comprazia em permanecer adormecido, sob os tesouros que forravam o castelo.

O universo mítico de Tolkien evoca O anel dos Nibelundos, do antissemita Richard Wagner: o tesouro enterrado, o dragão, os heróis guerreiros, o dom da invisibilidade, o anel mágico forjado pelo anão Alberich com o ouro roubado do Reno…

No filme, os anões são mercadores feios, narigudos, mas teimosos e inteligentes. Eles representam os judeus. Seu povo foi exterminado e agora os últimos sobreviventes tentam retomar sua terra natal, saqueada pelo Dragão e ocupada por demônios.

Os elfos são os Nibelungos do ideal wagneriano, o povo germânico que carrega o estandarte protonazista de Força & Beleza, com seu discurso de exaltação à pureza. Os orcs evocam os hunos, guerreiros asiáticos, horrendos, sem escrúpulos.

A fantasia de Tolkien tenta reconciliar judeus e germanos, tornando os anões e os elfos inimigos, mas nem tanto: eles se aliam e se revelam heroicos no campo de batalha, ao contrário do que ocorre na obra de Wagner, onde o mal representado por judeus e hunos precisa ser destruído pelos Nibelungos.

ALAN TAYLOR

Thor 2, o mundo sombrio

Thor: The Dark World (Thor II: o mundo sombrio, EUA, 2013, 122’, cor, aventura). Direção: Alan Taylor. Com Chris Hemsworth (Thor), Natalie Portman (Jane Foster), Tom Hiddleston  (Loki), Stellan Skarsgård (Selvig), Idris Elba (Heimdall), Christopher Eccleston (Malekith), Adewale Akinnuoye-Agbaje  (Algrim / Kurse), Darcy (Kat Dennings), Volstagg (Ray Stevenson), Fandral (Zachary Levi), Hogun (Tadanobu Asano), Sif (Jaimie Alexander), Frigga (Rene Russo, Odin (Anthony Hopkins), Richard (Chris O’Dowd), Tyr, o Deus da Guerra (Clive Russell), Capitão (Richard Brake), Atendente (Glen Stanway ), Paciente no hospício (Stan Lee), Capitão América  (Chris Evans), Taneleer Tivan, o Colecionador  (Benicio Del Toro), Atriz (Ophelia Lovibond).

Sequencia de Thor (2011), de Kenneth Branagh, Thor: The Dark Wrold se inicia com o super-herói do martelo restaurando a ordem no cosmos. Mas logo os Nove Reinos, em Alinhamento, são ameaçados pelo vingativo elfo Malekith, um inimigo sombrio da vida que só deseja destruir todo o universo, levando-o de volta às trevas através do uso do poderoso elemento Ether (uma metáfora óbvia da Energia Nuclear buscada atualmente pelo Irã).

Pesquisando, com a estabanada assistente Darcy e seu novo estagiário, uma passagem entre as dimensões do Alinhamento, a bela cientista Jane Foster cai num dos buracos bidimensionais e encontra o Ether, que penetra em seu corpo. Resgatada por Thor, ela é sequestrada por Malekith, que invade Asgard num momento de crise, quando o rei Odin manda prender o perverso e ambicioso filho adotivo Loki, que se alia aos inimigos na meta da usurpação do trono.

Fortalecido pelo Ether extraído de Jane Foster, Malekith enfrenta Thor e Loki, que se irmanam num combate extremo que começa em Londres quando o Alinhamento se consuma em Greenwich, com o Apocalipse prolongando-se até o cosmos. Essa sequência culminante da batalha pelo Ether é o show de efeitos especiais que justifica a superprodução, com Thor tendo a mão cortada por Loki, numa reviravolta cruel e surpreendente.

No primeiro filme, o empenhado Kenneth Branagh, levando Hollywood a sério, conseguia transformar o universo de durepoxi da Marvel num blockbuster com ressonâncias shakespearianas. Nessa sequência ridícula, Taylor, egresso da TV (Game of Trones), conforma-se às regras anti-intelectuais do blockbuster e ao universo irracional e truculento da Marvel.

Difícil imaginar maiores bobagens que as que os roteiristas reuniram no filme. E como se elas não bastassem, quando Loki demonstra seu poder de mutação, convertendo Thor na guerreira Sif (Jaimie Alexander) e a si mesmo em Capitão América (Chris Evans), “herói da Marvel que enlouquece a todos”, o filme se torna paródia de si mesmo, fazendo propaganda do blockbuster concorrente aliado. Triste ver astros e estrelas pagando mico em divertissements da nova Hollywood de esquerda, cuja moral se resume a: “take the money and run”.

O SINISTRO EM ‘O MÁGICO DE OZ’

Oz

The Wizard of Oz (O mágico de Oz, 1939), de Victor Fleming, tem um lado sinistro. Um dos anões do filme teria se matado no estúdio, de amor não correspondido ou após ser despedido. O suposto suicídio teria sido captado pelas câmeras e passado despercebido pelos editores. Quando Dorothy, o Homem de Palha e o Homem de Lata saem dançando na estrada amarela, podemos ver no meio da floresta, à esquerda, um corpo de anão dependurado por uma corda balançando entre as árvores. O estúdio teria declarado ser uma grua, ou o movimento de um grande pássaro oculto entre as árvores.

A cena com o corpo do “Munchkin suicida” pode ser vista com nitidez numa fita VHS de The Wizard of Oz supostamente lançada em 1980, comprada de um lote do acervo de um colecionador. À edição (forjada ou não), o usuário que a postou no YouTube acrescentou uma trilha sonora tenebrosa, o que torna a aparição do anão enforcado um momento digno dos melhores filmes de terror:

Mais informações sobre a origem e a autenticidade dessa fita de vídeo “lançada em 1980” não são fornecidas, reforçando a tese dos que defendem tratar-se de uma edição forjada. Na versão remasterizada do filme, vê-se claramente o pássaro enorme escondido atrás da árvore abrindo as asas quando os personagens penetram na floresta – uma visão igualmente sinistra:

Comparação entre as duas versões da cena:

Uma comparação melhor:

O caso é relatado numa postagem de Urban Legends:

Tentando provar que o anão suicida é uma lenda, Urban Legends afirma que o estúdio alugou toda espécie de pássaros do zoológico, mostrando um deles em outra cena. E demonstra que restos da edição fake não foram apagados, aparecendo as extremidades das asas da ave gigante entre as árvores. Mas essa edição poderia ter sido forjada pelo estúdio: as cenas justapostas parecem duas tomadas diferentes da mesma cena, e só o estúdio poderia ter outros takes da mesma cena.

A chamada versão não editada, lançada no vídeo de 1980, teria sido, então, um erro do estúdio, ao usar uma cópia “não corrigida”. Os que desejam desmascarar essa lenda apresentam ainda, como contraprova, a gravação de uma transmissão do filme em 1981, na TV, mas o estúdio – que nega tudo, assim como os Munchkins sobreviventes – teria, claro, substituído o suposto take maldito pelo take do pássaro gigante na versão final do filme lançada nos cinemas.

O melhor comentário de Facebook sobre o estranho caso do Munchkin suicida foi o do brasileiro Paulo Simões:

“Isso acontecia em todos os filmes antigos. O cinema e a dramaturgia sempre tiveram uma ligação estreita com a morte, o diabo e o oculto. Por isso o uso da computação gráfica está se tornando cada vez mais frequente, até virar o único meio. Repare que nas animações não morrem pessoas humanas.”

Tamanha perspicácia é mais um sintoma de nosso fantástico sistema educacional, que forma pessoas cada vez mais bem preparadas para enfrentar os grandes desafios dos tempos modernos.

PARA ONDE OLHO, VEJO UM VAMPIRO

Dracula (Drácula, 1931), de Tod Browning, com Bela Lugosi.

Dracula (Drácula, 1931), de Tod Browning, com Bela Lugosi.

Depoimento dado à repórter Cláudia Amorim, parcialmente publicado em O Globo, a propósito do seminário Noites com Vampiros: representações e estéticas do sangue, que ocorre de 12 a 15 de março de 2013, na Caixa Cultural, no Rio de Janeiro. No dia 13, às 18 horas, participo como palestrante na mesa intitulada Todos os vampiros: para onde eu olho há um vampiro

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Cláudia Amorim: A que metáforas você se refere quando fala do vampiro?

Luiz Nazario: Como mostrei no meu livro Da natureza dos monstros, as metáforas do vampiro podem ser sexuais ou políticas. Ser imaginário, o vampiro é um morto-vivo que mantém sua vida eterna alimentando-se de sangue humano. A partir dessa estrutura básica da criatura, muitas variações sobre sua natureza foram criadas em livros e filmes. Seu metabolismo, inspirado em fenômenos tanto naturais quanto sociais, inspira por sua vez as metáforas do vampirismo. O seu viver eternamente, sendo ele um cadáver, é também um morrer eternamente: por isso ele dorme num caixão, cujo fundo é recoberto com um bocado da sua terra natal. Drácula, cuja imagem não se reflete ao espelho, não penetra em casa alheia senão quando convidado, mas depois pode entrar quando quiser. Fedendo aos céus por ser um morto-vivo, ele se aproxima de suas vítimas depois que as hipnotiza e só é delas afastado através do uso de um crucifixo e de resmas de alho. Ele pode ser exterminado quando exposto à luz do sol ou mergulhado na água corrente, e melhor ainda se tiver seu coração cravado com uma estaca de madeira, com a cabeça cortada logo em seguida. O alimento exclusivo do vampiro, o sangue alheio, é uma metáfora da vida e, assim, o vampirismo torna-se facilmente uma metáfora da exploração. A metáfora política mais comum é essa que associa o vampiro ao capitalista. É assim que os comunistas vêm os capitalistas. Muitos cartunistas e propagandistas de sociedades totalitárias usam essa metáfora contra seus “inimigos”, na defesa de seu próprio sistema socialista de opressão, que é diverso, mas nem um pouco melhor. As características do vampiro também fazem dele uma metáfora do falo: como o Nosferatu está preso ao caixão, o pênis está preso ao escroto, “dorme” de dia e “desperta” à noite, quando se torna muito ativo; só entra no outro quando convidado, mas depois, entra à vontade; amolece diante de um crucifixo, sob a água corrente, com o cheiro de alho, que europeus racistas associam a estrangeiros indesejáveis; e pode ser eventualmente castrado.

Cláudia Amorim: Por favor, fale um pouco sobre essa onipresença que dá nome à mesa.

Luiz Nazario: O título da mesa – que não é de minha autoria – refere-se, creio eu, ao sentido metafórico do vampiro, associando este sanguessuga sobrenatural a dimensões da realidade social, projetadas e exageradas no imaginário. Num sentido amplo, podemos considerar as relações humanas viciadas como vampirescas: é uma carência de si que move invejosos copiadores, piratas, plagiadores, apropriadores de ideais e feitos alheios; invasores de propriedades privadas; saqueadores das fortunas acumuladas; capitalistas que exploram operários; trabalhadores que sobrevivem à custa de empresários; totalitários que se alimentam do poder das massas; mendigos que vivem de esmolas; maridos que usufruem o trabalho doméstico das esposas; esposas que vivem do salário dos maridos; espiões da vida dos outros; parasitas das emoções dos vizinhos; torcedores de times de futebol; etc. De certa forma, para onde olhamos podemos ver vampiros metafóricos em plena atividade.

OS INTOCÁVEIS

intouchables

Intouchables (Os intocáveis, 2011), de Eric Toledano e Olivier Nakache, é o mais forte candidato que a França deve apresentar para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Baseado em fatos reais (mas com o enfermeiro marroquino do caso verdadeiro representado por um personagem senegalês), o filme é divertido em alguns momentos e conta com atores excelentes, com destaque para a dupla central vivida por François Cluzet e Omar Sy.

Perto do final, a trama tem uma reviravolta pouco convincente, com o enfermeiro sendo despedido quando o irmão é ameaçado por traficantes. Ora, nada justifica a demissão do enfermeiro pelo patrão tetraplégico que o adora. Isso ocorre apenas para que ele retorne após o vácuo na “paixão” dos dois, e apronte mais algumas na companhia do amigo milionário. Nisso, os dois diretores “politicamente incorretos” seguem à risca, mas não de modo perfeito, os manuais americanos de roteiro para filmes de sucesso.

Mas o que faz soar meu alerta vermelho nesse filme é o subplot desagradável que perpassa a comédia “politicamente incorreta”, que pretende passar mensagens positivas sobre as limitações da vida: o choque cultural entre o imigrante que vive de salário-desemprego e o meio social burguês no qual ele é inserido ao aceitar o emprego. Esse choque é uma sublimação cor-de-rosa do choque cultural real entre o islamismo que chega “cheio de vida”, em ondas massivas, à Europa que, com sua cultura ocidental “rica e decadente”, o acolhe.

O filme toma o partido de uma nova cultura mista, que passa a dominar na Europa islamizada: a de um moralismo fundamentalista. O suposto islamita Driss adora putas, mas condena o estilo de vida da jovem filha do patrão, que namora aos dezesseis anos. Ele ainda dá em cima da secretária, de modo cansativo, sem perceber que ela o rejeita, por ser lésbica. Quando finalmente ela lhe apresenta sua namorada, ele as chama de “rapazes”.

O moralismo contagiante do personagem é combinado com um estilo de vida criminoso: órfão adotado por uma imigrante que se enche de filhos, Driss cresce inculto na degradada periferia de Paris, torna-se traficante de drogas e é preso por roubo de jóias. O consumo de drogas é propaganda no filme, numa sugestão implícita da legalização da maconha, mostrada como remédio para o alívio das dores. Pior quer tudo é a incultura militante, com a paródia da música clássica, a ridicularização da ópera, a depreciação das artes plásticas, a ojeriza pela poesia.

A exaltação hilariante da degradação da cultura europeia pela sua contaminação com os “valores” do islamismo, celebrados pelas esquerdas sem rumo após o fim do comunismo, explica o grande sucesso do filme. É nesse contexto que a paródia do bigode de Hitler encontra sua razão de ser: o filme sugere que, graças à incorporação do “humanismo violento” do Islã, já se pode brincar com a figura de Hitler, rir com a figura de Hitler, admirar secretamente a figura de Hitler…

GUSTAVO NIETO ROA

Entre lençóis (2008), de Gustavo Nieto Roa, com Reynaldo Gianecchini e Paola Oliveira.

O cineasta colombiano Gustavo Nieto Roa realizou Entre lençóis (2008) no Brasil, com equipe e atores brasileiros, e a produção nacional ganha em alguns momentos um acento hispânico, com o erotismo vulgar cedendo ao melodrama romântico. Os personagens são, contudo, universais: tipos modernos, Roberto (Reynaldo Gianechini) e Paola (Paola Oliveira) caçam em boates de luxo e consumam o abate na mesma noite, sem nem sequer saber os nomes um do outro. Abrigados no motel mais próximo, eles se atracam num coito selvagem, depois do qual ameaçam se deixar. Mas algo os prende naquele quarto, onde centenas de outros casais se estrebucharam antes deles em orgasmos, e que imaginamos mal cheiroso apesar de limpo. E eles acabam passando a noite ali jogando conversa fora, firmando um pacto de sinceridade para revelar seus segredos mais íntimos, até se apaixonarem.

Roa conheceu Gianechini durante as filmagens de Sexo, amor e traição (2004) e o quis imediatamente para o papel. Paola de Oliveira parece ter sido também a primeira opção de atriz para a personagem. Os dois jovens atores esforçam-se para manter o interesse do espectador no filme, que só depende mesmo dos atores, pois se passa quase inteiramente no quarto de motel, abusando de closes dos dois corpos. Rodado em dois meses, dentro de um verdadeiro motel, no Rio de Janeiro, o filme se ressente de ter sido feito em vídeo: a imagem não é a melhor que se poderia desejar. A nudez dos personagens, necessária à trama, não é agressiva e até peca por certa timidez, com os atores escondendo os órgãos genitais, jamais vislumbrados. Para os que procuram cenas quentes o filme é uma decepção. As trepadas do casal são apenas um pretexto para cansativas discussões sobre relacionamento.

O filme comporta sentimentalismos baratos, baboseiras a esmo, falação contínua, repetição de clichês, reviravoltas de roteiro, joguinhos de ciúmes e manipulações típicas de novelas das dez, consideradas mais fortes pelas crianças que continuam na sala. Os personagens sofrem de uma estafante normalidade. É um entretenimento feito sob medida para o homem médio comum, desprovido de imaginação, e para o qual o máximo de fantasia erótica é passar óleos aromáticos pelo corpo todo e usar camisinhas comestíveis de vários sabores, ou  fazer uma produção cenográfica com a ajuda de um amigo que, num piscar de olhos, cobre o quarto de rosas vermelhas, espalhando pétalas pelo chão, para que a mulher se sinta uma deusa e, logo, disposta a uma nova trepada. No cinema, somos obrigados a ver tudo isso, mas na TV existe o excelente recurso do fast-forward, que podemos usar aqui com prodigalidade, parando a imagem apenas para conferir um que outro detalhe dos dois belos corpos.

RIDLEY SCOTT

Michael Fassbender, como o robô David, em ‘Prometheus’ (2012), de Ridley Scott.

Apesar dos efeitos especiais tecnicamente perfeitos e da direção de arte esteticamente impecável, Prometheus (Prometheus, 2012), de Ridley Scott, é um pastiche de luxo do Alien (Alien, o oitavo passageiro, 1979), do mesmo diretor. O processo 3D do filme também não passa de um modismo: há mais efeitos 3D nos trailers e anúncios nacionais produzidos em 3D e exibidos antes do filme que nesse Alien requentado.

Convocadas pelos roteiristas, as ideias mais surpreendentes do original compareceram em massa: ali estão elas assinando a lista, levantando os braços, batendo ponto, berrando “presente!”. Temos as máquinas criogênicas que preservam os astronautas em anos de viagem espacial; o robô de aparência humana que trai e equipe e acaba perdendo a cabeça; um astronauta asiático certinho e outro afro-americano (Idris Elba) movido pelos instintos; os cientistas encantados com um planeta estranho anos-luz distante da Terra.

Temos também todos os membros da tripulação sendo invadidos ou contaminados por organismos estranhos, e dizimados aos poucos; os aliens parasitas que usam os humanos como hospedeiros, entrando pelas suas bocas e saindo pelas suas barrigas; a heroína machona que sobrevive a tudo e a todos; o grande Alien que ressurge e promete, no final da trama, com a aparição-mensagem final – obrigatória para os fãs e produtores da série – uma continuação sem fim para mais esse “sucesso”.

Marx escreveu que a História se repete em farsa. Também um filme se repete em forma de paródia. Tudo o que foi espontaneamente inventado em Alien torna-se um aplicativo forçado em Prometheus, um produto industrialmente programado como uma espécie de embalagem nova para um velho produto testado e comprovado à exaustão. Não há surpresas num universo que nasce lindamente produzido em formato déjà vu.

A única novidade de Prometheus é um detalhe de figurino: os dois galãs do filme – o perfeito robô David (Michael Fassbender), que ama Peter O’Toole em Lawrence da Arábia, e o jovem cientista idiota Charlie (Logan Marshall-Green), que se angustia com a própria idiotice, usam, não por coincidência de hábitos, chinelos de dedo dentro da nave. Esse modo de estar à-vontade dá aos dois filhotes da hipertecnologia um ar “riponga”, mas de luxo, pois as chinelas espaciais devem ser tão caras como as nossas havaianas com fios de ouro manufaturadas para os novos ricos poderem se exibir nas praias.

Na ausência de ideias originais, as emoções das plateias, hoje embrutecidas, são estimuladas com altas doses de violência e absurdo. No original, o monstro, apenas vislumbrado ao longo da trama, só era visto, de relance, no final; a violência gráfica de seus ataques era geralmente atenuada pelos cenários sombrios. Aqui os monstros aparecem, sempre que possível, sob uma luz meridiana, e seus ataques são exibidos em detalhes escabrosos. A cena da operação, fortemente iluminada, foi concebida para enojar ao máximo as pessoas sensíveis e deliciar os experts. O crítico Marcelo Hessel, do Omelete, ficou bastante satisfeito: “A cena do ‘parto’, especialmente, é linda”.

Já os absurdos são tantos que se torna enfadonho enumerá-los. Basta citar a incrível capacidade de resistência da cientista Elizabeth, vivida pela interessante atriz sueca Noomi Rapace. Após ter a barriga cortada a laser de ponta a ponta, ela pula da mesa de operações e corre em disparada, só um tanto dolorida, até o final do filme, quando precisa escapar da gigantesca espaçonave, que despenca sobre ela e a empresária (a belíssima Charlize Theron). Esta, claro, morre esmagada, por ser uma capitalista avara e egoísta, sem o jogo de cintura da cientista mística e telúrica, capaz de rolar quilômetros em dois segundos, embora ainda sofra um pouco com a barriga recém-cortada-e-grampeada.

Coerente com a metafísica barata da “busca pelas respostas às perguntas mais importantes da humanidade”, o filme escalou o ainda jovem galã Guy Pearce para o papel do ancião proprietário das Weyland Industries. Sua maquilagem de corpo inteiro é visivelmente uma máscara. Hollywood prefere agora maquiar atores jovens, criando velhos fakes com rugas brilhantes de plástico, a empregar atores anciãos, que poderiam perfeitamente encarnar esses papéis. Na Hollywood de esquerda, anticapitalista, preocupada com questões metafísicas, velhos atores aposentados devem procurar, longe das telas, por sua própria conta, “as respostas às grandes perguntas da humanidade”.

BRIGITTE BARDOT

Entrevista a Paulo Henrique Silva, 6 de março de 2012.

Reportagem publicada: SILVA, Paulo Henrique. Força loura. Jornal Hoje em Dia, 8 mar. 2012, Caderno Cultura, p. 1.

De que forma Brigitte Bardot moldou a imagem da mulher na década de 1960?

Na verdade, Brigitte Bardot é uma estrela dos anos de 1950, lançada por Roger Vadim no início dessa década, em filmes que não fizeram grande sucesso, até o explosivo escândalo de Et Dieu… créa la femme (E Deus criou a mulher, 1956), onde apareceu nua, interpretando uma jovem amoral numa pequena cidade balneária francesa. Nos anos de 1960 ela já tem uma longa carreira atrás de si. É quando, madura como atriz, fez seus melhores filmes, tentando minimizar a imagem de vamp sedutora, vagabunda e imoral – sempre andando pelada, dormindo pelada, nadando pelada – que acabou se tornando sua marca registrada no cinema, graças aos seus diretores machistas. Como nesta época o cinema americano sofria pesadas proibições – Marilyn Monroe nunca apareceu nua num filme, ou apenas numa rápida cena de seu último, o inacabado Something’s Got to Give (1962), de George Cukor, lançado sob a forma de curta-metragem apenas em 2001 –, Bardot conquistou a fantasia masculina como ícone sexual. Era o estereótipo vivo da “mulher francesa” – liberada, fácil, salope. Tão forte era a fantasia gerada pela Bardot nos anos de 1950 que o cinema brasileiro criou a paródica BeBê, em O Homem do Sputnik (1959), de Carlos Manga, com Norma Benguell numa imitação notável da Bardot. A Benguell logo se tornaria a “nossa” Brigitte ao protagonizar em Os cafajestes (1962), de Ruy Guerra, a primeira sequência de nudez feminina integral no cinema brasileiro.

O que difere BB de outros símbolos sexuais? Bardot tinha uma beleza mais natural, diferentemente das louras fabricadas como Marilyn Monroe?

Bardot era um símbolo sexual com acento francês, isto é, sua nudez era generosa, sem a censura a que estava submetido o cinema americano. E ela ostentava essa nudez com espontaneidade, sem qualquer constrangimento, como se fosse esse o seu “natural estar no mundo”. Simone de Beauvoir escreveu um belo texto sobre essa criação de Bardot. Parecia não haver nenhum distanciamento ou contradição entre a pessoa da atriz e as personagens vulgares de seus filmes, o que, é claro, não era verdade, o que diz muito sobre seu verdadeiro talento de intérprete. Na vida real, como se demonstrou, a imagem que Bardot projetava a incomodava profundamente. E isso contribuiu para seu progressivo isolamento, e para a revelação de uma personalidade mais preconceituosa e tacanha que libertária ou libertina. Também a beleza icônica da “loira” Bardot foi tão fabricada quanto a da “loira” Marilyn: nem uma nem outra eram loiras de verdade. Marilyn era ruiva e Bardot era morena, e é assim, como adolescente brunette, meio desajeitada e tristonha, que BB aparece em seus primeiros filmes.

Bardot era apenas um rostinho bonito, badalado por Roger Vadim, ou tinha talento?

Como Marilyn, Bardot era uma atriz excelente, que também sabia cantar e dançar muito bem – ela fez musicais na TV e gravou vários discos produzidos por Sacha Distel e Serge Gainsbourg. É uma pena que tenha se retirado para sua mansão, La Madrague, em Saint Tropez, recusando novas propostas de filmes, dedicando-se apenas à propaganda da sua fundação não lucrativa de proteção aos animais. Esse amor extremo aos bichos denota certo horror à humanidade…

Foi em E Deus Criou a Mulher que ela teve sua atuação mais marcante?

Foi sua atuação mais marcante no sentido de ter sido um papel provocador para a época em que o filme foi feito, pelo amoralismo da personagem e pela nudez que ostenta. Mas ela nos legou interpretações mais sólidas em filmes bem melhores: em La Vérité ( A verdade, 1960), de Henri-Georges Clouzot, como a mulher acusada de matar o ex-amante; em Vie Privée (Vida privada, 1962), de Louis Malle, como uma estrela de cinema perseguida pelos fãs e pelas mídias, e que acaba se matando – a última cena, em que ela cai no vazio, por longos minutos, em ralenti, linda com os cabelos esvoaçantes, sem nunca se estatelar no chão, é antológica. Também marcante é sua presença em Le Mépris (O desprezo, 1963), de Jean-Luc Godard, contracenando com Fritz Lang.

O fato de ter deixado a profissão cedo, aos 39 anos, ajudou a perpetuar o mito, como acontece com artistas que morrem no auge da fama?

Infelizmente para os mitômanos, ela continuou viva, e não soube cultivar seu mito, como Marlene Dietrich e Greta Garbo, que também deixaram o cinema na hora certa e, vivendo ainda por longas décadas, desapareceram das mídias para preservar seus ícones. Hoje a Bardot, com 78 anos, pouco se importa com o cinema. Envelheceu mal, adotando a defesa militante e raivosa, quase anti-humana, dos animais. É curioso como ela ficou feia na meia-idade e feíssima na velhice. Andando com a ajuda de muletas, ainda ocupa as mídias para fazer declarações preconceituosas contra negros, homossexuais e imigrantes. Foi condenada pela Justiça a pagar uma multa ao ofender muçulmanos pelo abate ritual de animais, e deu publicamente seu apoio à Frente Nacional de Le Pen, um partido de extrema-direita.

O EDIFÍCIO YACOUBIAN

Omaret Yacoubian (O Edifício Yacoubian, Egito, 2006): clichês da homosssexualidade

Omaret Yacoubian (O Edifício Yacoubian, Egito, 2006, 165’, cor, drama, falado em árabe). Direção: Marwan Hamed. Roteiro: Marwan Hamed, com base no romance de Alaa Al Aswani. Fotografia: Sameh Selim. Com Adel Iman, Nour El-Sherif, Khaled Sawy, Yossra, Mohamed Imam, Hind Sabri.

Construído em 1930, o Edifício Yacoubian foi um dos mais charmosos do centro do Cairo, e outrora um marco de elegância e requinte, onde moravam “até judeus”. Depois da ditadura de Abdel Nasser, com a fuga dos judeus e a mudança de governo, o prédio foi ocupado por militares, cujas esposas criavam galinhas no telhado, iniciando a decadência do prédio, hoje habitado por uma fauna de todas as classes sociais – os ricos remanescentes nos luxuosos apartamentos e os pobres na favela instalada no telhado.

Um ex-engraxate enriquecido com o tráfico de drogas escolhe uma segunda esposa para com ela fazer sexo, já que a esposa atual não responde à sua tara de velho. Ele também quer tornar-se um político corrupto, mas cai em armadilhas de políticos ainda mais espertos, e mais corruptos, ficando na dependência desses gângsteres, intimamente ligados à polícia e ao sistema judiciário. O decadente Paxá Zaki (Iman) tenta manter a dignidade enquanto visita a elegante ex-amante cantora ocidentalizada e seduz garçonetes vagabundas de bares populares, que lhe dão golpes, até ser expulso de casa pela irmã gananciosa e histérica, que deseja apossar-se de seus bens e propriedades.

A bonita pobretona Bothayna precisa ceder às nauseantes investidas sexuais de seus sucessivos patrões para sustentar a família. Depois de romper com o namorado, que se converte ao islamismo radical, ela se deixa seduzir pelo Paxá. Já o ex-namorado, que sonhava em ser policial, depois de ser rejeitado na academia por ser de família pobre, participa de manifestações de protesto islâmico pela limpeza do país e acaba sendo torturado e estuprado numa delegacia, convertendo-se então num terrorista suicida. O jornalista Hatem (Sawy), que se tornou homossexual na infância ao ser abusado por um criado, usa seu dinheiro para seduzir um policial pobre, casado e pai de um filho pequeno.

Pintando uma série de caracteres e acompanhando suas atividades dentro e fora do Edifício Yacoubian, o filme transforma o prédio num microcosmo do país, dividido entre a decadência dos costumes em meio a um arremedo de democracia e o terrorismo islâmico que cresce prometendo limpeza geral. Baseado no romance homônimo de Alaa Al Aswani, um best-seller local, o filme teve um orçamento de US$ 6,7 milhões, tornando-se o filme mais caro da história do cinema árabe.

O simples fato de o roteiro de O Edifício Yacoubian ter sido aprovado causou sensação no Egito, o maior país produtor e exportador de cinema e TV do mundo árabe. Mas dificilmente este filme será exportado para o resto do mundo islâmico devido ao tema polêmico. Se os árabes beijam-se, andam de mãos dadas e dormem na mesma cama, essas intimidades não são consideradas sinais de homossexualidade. Por isso muitos estrangeiros viajam ao Egito e ao Marrocos em busca de sexo com homens que não se consideram gays por isso. São aqueles identificados como efeminados que sofrem todo tipo de repressão: de penas leves no Líbano (onde foi fundada a Helen, primeira associação de homossexuais do mundo árabe e cuja presidente, Ghassan Makaren, luta pelo reconhecimento da cidadania) à pena de morte na Arábia Saudita, por exemplo.

Também no Egito a homossexualidade é crime: em 2002, a polícia invadiu um restaurante-barco no Nilo usado como ponto de encontro gay prendendo 52 homens, 21 dos quais foram condenados a três anos de prisão. Os gays muçulmanos citam em seu favor uma passagem do Alcorão que reporta ter havido em Medina uma casta de efeminados que cantava para Maomé. Mas para os líderes religiosos, todo e qualquer desvio do caminho sagrado da sexualidade reprodutiva é errado e anormal.

O ator Khaled Sawy observou ao jornalista Paulo Cabral: “É verdade que temos censura. Quando estamos produzindo uma obra de arte sabemos que há um teto que não pode ser ultrapassado. […] Mostrar cenas muito explícitas de corpos se tocando e de beijos – principalmente entre dois homens – ultrapassaria em muito o teto, não só da censura como também da sensibilidade do público egípcio. Nós estamos mostrando neste filme o amor homossexual completo, de maneira nunca antes exposta no cinema árabe. Mas o que queremos mostrar é todo o lado do sentimento e do amor e não necessariamente dois homens na cama. Queremos que as pessoas assistam ao filme e saiam de lá pensando. Não queremos que ninguém saia do cinema no meio do filme fisicamente chocado com o que viu.”

Mesmo assim, 112 deputados egípcios exigiram cortes no filme. O diretor ameaçou retirar as cópias em exibição nos cinemas se isso ocorresse, o que levou a uma corrida do público às salas, provocando recordes de bilheteria. Após o sucesso local, o reconhecimento internacional: em 2006, o filme conquistou o Grande Prêmio de Longa-Metragem na 8.ª Bienal de Cinema Árabe em Paris; o Prêmio de Melhor Diretor Estreante nos Festivais de Tribeca e Montreal e de Melhor Ator (Adel Imam) na Mostra de São Paulo.

O filme não toma, aparentemente, nenhuma posição. É como se espiasse por cima de um muro uma vida podre desenrolando-se no Cairo, sem condenar esse ou aquele personagem. Essa falsa neutralidade é obtida através de uma técnica corrosiva: todos os personagens caem em tentação; todos tentam enganar o próximo; todos possuem uma sexualidade mórbida; todos são antipáticos, corruptos, repugnantes. Apenas a ex-amante do Paxá, que canta músicas ocidentais num restaurante de luxo escapa dessa pocilga humana. Mas o destino reserva a outros dois personagens – e apenas a eles – um final feliz: depois de passar o filme atrás de moças vulgares e enchendo a cara, dizendo-se diz o último gentleman do Egito, o Paxá encontra sua cara-metade na jovem pobretona Bothayna, que desiste de dar-lhe um golpe e aceita o enrugado “príncipe encantado” que promete levá-la a Paris: os dois são redimidos pelo casamento no final.

Já o policial pobre seduzido pelo rico jornalista gay purga-se de sua queda na degeneração deixando o Cairo e voltando para sua aldeia com a esposa – que ele surrava e violentava de vez em quando – depois que o filho menor morre de febre enquanto ele dormia com o jornalista. Este, infeliz com a partida do amante, volta a caçar na rua até encontrar a morte de forma violenta, estrangulado na cama, quando se oferecia para ser penetrado por um desconhecido que lhe rouba o relógio de ouro e outros pertences. Também o terrorista islâmico termina os dias violentamente, crivado de balas durante um atentado em que mata o policial que o torturou na delegacia e o entregou aos estupradores. Assim, de certa forma, ao romper pretensamente um tabu no cinema árabe, Omaret Yacoubian apenas confirma para o mundo islâmico a homossexualidade como o Mal.