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NO MARROCOS, COM A CRÍTICA

Críticos em Casablanca: Nazario, Pereira, Toninho (em pé), Rubinho, Fonseca (agachados). Foto: Lambe-lambe.

Durante quase quatro anos fui crítico de cinema da revista IstoÉ, tendo como editores Geraldo Mayrink, Marília Pacheco Fiorillo e Humberto Werneck. Assistia às pré-estréias da meia-noite, às sessões matutinas com cafés da manhã, às sessões para a crítica nas pequenas cabines das empresas; usufruía de uma entrada permanente de cinema e fui um dos poucos críticos convidados pela Fox Films e pela Royal Air Marrocos para visitar, numa inusitada promoção, as locações do filme The Jewel of the Nile (As jóias do Nilo, 1985), de Lewis Teague. O Marrocos era, para mim, apenas um lugar no mapa, até que me encontrei, em 1986, junto a outros críticos de cinema, a caminho da África. Seguem-se páginas inéditas do diário de minha primeira viagem internacional: no Marrocos, com a crítica…

Para Toninho – que aniversaria hoje.

No aeroporto, pouco antes da partida, além da cansativa burocracia da viagem, paira a ameaça do terrorismo líbio: todos os passageiros são revistados. Dentro do avião, um fotógrafo da Folha imagina ver uma bomba na poltrona à nossa frente: “É um fio solto”, explica-lhe o comissário de bordo. Assim, com mais de uma hora de atraso, decolamos à 1h30 do Rio de Janeiro, com destino a Casablanca. O grupo de críticos convidados inclui Antonio Gonçalves Filho, Carlos Fonseca, Geraldo Mayrink, Edmar Pereira, Nelson Hoineff, Rubens Ewald Filho, mais alguns jornalistas da área de Turismo.

Logo a viagem se transforma numa festa. Cecília, um travesti a bordo, senta-se ao lado de Rubens, ocupando, por longas horas, a poltrona de Edmar, exibindo o álbum fotográfico de seus shows eróticos. Observando tudo à distância, Geraldo se pergunta: “Será o começo de uma grande amizade?”. Assim que se livra de Cecília, Rubens se explica: “Agora já tenho onde ficar em Paris.” Depois, tiramos um retrato em grupo e passeamos em vão pelos corredores à procura de poltronas livres para vermos o filme que seria exibido. Decepcionado, Geraldo toma conta do serviço de bordo: descobriu onde a aeromoça guarda os corpos e o vinho, e assalta a reserva.

Apagadas as luzes, um francês reclama que não estamos deixando ninguém dormir com nossas discussões intermináveis. Rubens mostra-se de mau humor: “Foi o pior jantar que comi num avião.” Ao descobrir que viajamos na segunda classe, explode: “Estamos no porão do Titanic! Somos os coitadinhos de E la nave va!”. E faz a expressão indescritível da gente lamentável que embarca clandestina no navio de Fellini. Os marroquinos já se aproximam de nós, entabulando conversas fiadas. Edmar exige de Maria Emília, a public-relations da Fox, uma sessão de haxixe como parte das programações. Rubens diz que eu, fumando, escreverei mais dez livros….

A música árabe nos fones de ouvido introduz-me no estrangeiro. De madrugada, Geraldo me chama para ver o espetáculo da aurora. Por horas a fio, o sol tinge o céu de vermelho, laranja, lilás, amarelo, dourado, acima das nuvens que parecem cordilheiras, ilhas, montanhas de algodão. Geraldo conclui: “É acadêmico, mas bonito.”

Chegamos esgotados em Casablanca. Um jovem guia bem apessoado que se apresenta como Youssef nos recepciona no aeroporto Mohamed V. Nota-se, pelo rosto empapuçado, que acordou bem cedo para cumprir suas obrigações. No microônibus que nos leva a Rabat, indiferente ao nosso cansaço, ele nos explica o país detalhadamente. Sua voz é monocórdica, com forte acento árabe no francês recitado. A certa altura, Rubens pergunta: “Mas ele não desliga?”. Geraldo geme e suspira. Edmar revira os olhos. Nelson se contorce. O mal-estar é geral, mas ninguém ousa interromper o falatório. Finalmente, comovido por tantas expressões de dor, peço a Youssef que se cale imediatamente. Desconcertado, ele se acalma aos poucos. A crítica me aplaude e enaltece. Um repórter do Estado toma-me por herói. Mas as duas jornalistas da Revista Geográfica Internacional, sexualmente interessadas em Youssef, censuram-me veladamente.

Do Hotel de la Tour Hassan, em Rabat, vamos almoçar no Royal Golf Der Salam, onde, às vezes, o rei joga golpe., É um clube esplêndido, com um bem cuidado jardim de violetas, margaridas e rosas selvagens do tamanho de uma mão espalmada. Durante o almoço, imaginamos Edmar se afogando na banheira com uma overdose de haxixe e as possíveis manchetes que o caderno 2 daria: “Alegria! E o coração de Edmar não suportou” ou “Afogado na banheira. Era Edmar”. Seguimos para conhecer o palácio do Rei Hassan II, o suntuoso mausoléu construído ao lado de uma mesquita do século XII, cuja torre desabou e que abriga os restos do seu pai, Mohamed V, a quem o Marrocos deve sua independência, desde 1956. Antes de chegarmos, Geraldo tem um ataque de nervos e manda parar o ônibus. Quer voltar sozinho para o hotel e descansar. Ele é deixado no meio da rua pelo jovem guia estupefato. Sem sequer saber o nome do hotel, ele vagou por toda Rabat, sem encontrar um taxi, e chegou ao hotel milagrosamente, bem depois de nós… Toninho observa: “Os críticos comportam-se como turistas-divas!”.

Diante da Torre Hassan, Youssef explica-me que para os muçulmanos o Paraíso ganha-se pelo despeito ao outro, pela crença em Deus e no Profeta, pela peregrinação a Meca pelo menos uma vez na vida e pelas cinco orações diárias. O ritual das abluções é parte importante da religião islâmica. Noto que não há imagens na arte: o antropomorfismo e o zoomorfismo são proibidos pela religião. Assim como o álcool: nos bares e cafés, freqüentados exclusivamente por homens, só se bebe café com leite e chá de menta.

O interior do mausoléu todo branco é composto de pastilhas multicoloridas, que culminam num enorme lustre de bronze. Lá embaixo, ao lado do túmulo, um homem reza sobre o Corão aberto, como a velar eternamente pela alma do soberano. Nosso estranho anfitrião, Mohamed Tazi, explica que ele é pago para isso. Edmar acha tudo “maquiado demais”. O fotógrafo da Folha não entra no edifício e, diante do meu espanto, justifica-se: “Não dá para trabalhar assim; não consegui fotografar direito nem a parte exterior”, confirmando a tese de Susan Sontag, que relaciona o ato de fotografar nas férias ao sentimento de culpa de quem se aferra a uma rígida moral do trabalho.

Logo ao chegarmos ao hotel, Fonseca sofre um infarto e é obrigado a permanecer em Rabat. Seguimos para Meknes, no mesmo dia. Antes, paramos em Khemisset, toda cor de terra roxa, onde há uma fonte surrealista, composta por três cavalos e um peixe de pedra coloridos. Aí, tomamos chá de menta com marroquinos, sentado de frente para aruá. Rubens comenta: “É isso o que eles fazem no domingo? Eu era feliz e não sabia.” Edmar aproxima-se de mim e sussurra em meus ouvidos: “Nazario, você não está chocado com o reducionismo da crítica, com a falta de compreensão?”. De fato, eu estava. Os campos de oliveiras, papoulas e margaridas; os minaretes, as cegonhas e os burrinhos não haviam liberado a afetividade dos críticos, apenas sua memória fotográfica. O próprio Edmar achava que a paisagem era “o melhor no gênero”. Toda visão era comparada ao décor de um filme já visto. Eram passados em revista todos os filmes cuja ação ou locação situava-se no Marrocos, de Morocco (Marrocos, 1930), de Joseph von Sternberg, a The Man Who Knew Too Much (O homem que sabia demais, 1956), de Alfred Hitchcock.

A sensibilidade dos críticos estava dirigida para as semelhanças, as correlações, as analogias. E nada lhes era sagrado. Se Youssef mostrava-nos o que para ele era importante, belo e misterioso, de tudo isso os críticos se apressavam a escarnecer, demonstrando sua indiferença. Eu me divertia muito com o grupo, mas o narcisismo, entregue a si mesmo, tornava-se freqüentemente agressivo. À falta de um filme, objeto-espelho privilegiado, os críticos decalcavam suas vítimas da realidade. Para tirar-me da depressão, Edmar começou a contar-me como, crescendo no interior de Minas, abandonado pela família, e dotado desde cedo de uma sensibilidade doentia, encontrava consolo em viver no pasto, com os animais da roça: “Fui boi, e também me apaixonei por uma ovelha.” E me enternecia narrando seu passado zoomórfico, sua infância zoofílica.

Em Meknes vimos o belo Portal de Challah, do século XIV, as portas monumentais de Bab Mansour, Bab Berdaine, Bab Jamaa Ennouar e Bab Khémis. Depois, o túmulo de Moulay Ismäes, segundo soberano da dinastia alauita. Foi uma espécie de Rei Sol do Marrocos, sonhando em casar-se com a filha de Luís XIV, enquanto se incumbia de decapitar pessoalmente os seus escravos. Ele teria gerado 800 filhos e construído inúmeros palácios para abrigar seu harém. Seus restos mortais encontram-se dentro da única mesquita acessível aos não-muçulmanos. Passando pela Bacia de Agdal, que irrigava os jardins do palácio, pelo Estábulo que – dizem – abrigava 12 mil cavalos, e pelo imenso e sinistro depósito de cereais, tenho a impressão de penetrar na pousada de um gigante. Enfim, mergulhamos no caos da Praça El Hedim, e voltamos para o hotel, sob o protesto das duas jornalistas insuportáveis e de Maria Emília, que ansiavam por estranhas aventuras nas vielas da cidade antiga.

Logo fomos surpreendidos com a pior notícia que eu poderia ouvir: como ocorria uma “reunião de líderes árabes” em Fez, o passeio a essa cidade, que estava programado no roteiro de nossas excursões, fora cancelado. Numa medida totalitária, especialmente revoltante para mim, que aguardava ansiosamente conhecer a universidade mais antiga do mundo, as autoridades simplesmente fecharam a cidade aos estrangeiros. Fiquei a imaginar que reunião levaria um governo a impedir, sem qualquer consideração para com os turistas que visitavam o país, o acesso a uma cidade histórica da importância de Fez.

No dia seguinte, fomos recompensados com uma visita às ruínas romanas de Volubilis. Era mais um episódio na história das conquistas sofridas pelo Marrocos. O país fez parte do império cartaginês, transformou-se na província da Mauritânia sob os romanos, foi tomado pelos árabes, declarou independência em 788, com várias tribos unificadas no século X pelos almorávidas até o século XV, quando portugueses e espanhóis apossaram-se de seus portos, só reconquistados no século XVII, para serem novamente perdidos para os franceses, até o início do século XX.

Volubilis é uma cidade-ruína. Segundo o guia local, ela foi soterrada pelo mesmo terremoto que arrasou Lisboa no ano de 1755. A população de dez mil pessoas sucumbiu. Nomeada com o nome de uma flor – volubilis – era uma cidade de luxo e conforto, com um grande arco, termas, banhos públicos, vomitórios, edifícios com mosaicos coloridos e dezenas de estátuas, das quais só restam os pedestais. Assistir ao por do sol em meio às ruínas de Volubilis foi uma experiência fascinante, mesmo para a endurecida crítica.

A caminho de Marrakesh, Youssef fornece-nos uma longa explicação – ele não perdeu o hábito de falar como matraca – sobre o casamento no Marrocos. No casamento tradicional, ao atingir 17 ou 18 anos, o filho diz para a mãe que quer se casar. Esta comunica a decisão ao pai, que procura o pai da moça que ele julga apropriada. Com uma troca de presentes, dá-se o pedido oficial. O espelho é um bom presente para as noivas: quanto mais rico o casamento, mais espelhos a noiva ganha para decorar seu quarto. Depois de uma semana de visitações entre os parentes, chega o grande dia, quando o noivo conhecerá sua futura esposa. Mas é só depois de consumado o ato sexual que ela pode tirar o véu e revelar seu rosto ao marido. É preciso então exibir às famílias o sangue no lençol. À vista desta prova de sucesso, as mulheres cantam com a língua a honra comprovada da família. Se isso não ocorre há escândalo e guerra tribal. Entre os berberes e montanheses, esse tipo de casamento ainda é bastante praticado. No casamento marroquino moderno, os ritos tendem a transformar-se em festas. Mas que ninguém se engane: os regulamentos continuam tão rígidos quanto nos casamentos mais tradicionais.

Marrakesh deslumbra à primeira vista por ser uma cidade toda ocre. Muralhas erigidas no século XI ainda a protegem por treze quilômetros. O minarete da Kutubia, de 67 metros, com um desenho diferente em cada uma das quatro faces, domina a paisagem. No palácio Bahia há alguns dos mais belos interiores em estilo almorávida. Visitamos o mausoléu da família real saadiana, do século XVI, mas, ao penetrarmos na necrópole por sinistros corredores estreitos, Rubens tem um acesso de tédio e decide voltar para dentro do ônibus, onde permanece lendo, ensimesmado, sua revista Première.

A guia local explica que cada dinastia transferia a capital para uma cidade diferente: no século X, os almorávidas passam a sede do governo de Fez para Marrakesh; no século XIII, os merinidas a transferem de novo para Fez; no século XV, os saadianos reelegem Marrakesh; depois, os alauítas preferem Meknes. Também cada dinastia destruía – verdadeira barbárie – os monumentos da dinastia anterior, por mais belos que fossem os edifícios, construindo os seus sobre as ruínas. Só as tumbas dos ex-soberanos eram poupadas. Por isso restam poucos exemplos de cada estilo arquitetônico.

À noite, percorro com Edmar e Toninho uma avenida tenebrosa, onde só se avistam de ponta a ponta, os retratos iluminados do rei Hassan II, afixados, poste sim, poste não, até o infinito, num anacrônico culto à personalidade. Caminho por esse horror de braço dado a Toninho, como dois marroquinos, notando a expressão de infelicidade no rosto de Edmar. Mais tarde, ele me confessa sentir inveja de todos os prazeres alheios. Por isso, à noite, quer me tirar para dançar na boate do Hotel. Sem a menor vontade de dançar, declino do convite. Rubens tira para dançar cada uma das jornalistas sem atrativos, e Geraldo lhe diz, à parte: “Hum… Você só pega mulheres sensuais!”. E assim a noite se esvai.

O almoço típico em tenda árabe, com um show de “Folclore e Fantasia” a convite do Club Mediterrané ultrapassa os limites do ridículo, A chamada “Fantasia” é uma espécie de Disneylândia das Arábias. Originalmente, devia ser uma encenação épica sobre as origens do povo e a unificação das tribos, Agora, tudo se passa ao som do Bolero de Ravel, e a cavalgada dos guerreiros é acompanhada de um comentário “poético” nauseante. Salva-se a comida, apesar da necessidade de se usar as mãos. Os grupos folclóricos cantam e dançam durante o almoço, repetindo versos em homenagem ao rei.

Visita ao mercado: um labirinto do qual não se sai enquanto não se gasta até o último dirham. Contam que um turista ali se separou da esposa loira e nunca mais a encontrou. O detalhe da cor dos cabelos da mulher serve para dar verossimilhança à lenda… Mas o mercado parece, de fato, ser um palco onde se perpetram todos os crimes. Na Praça Djema el F’na, perco-me do grupo, atraído por uma moça berbere, coberta por um véu lilás, que me leva, hipnotizado, para sua alcova. Perdido na multidão, eu a sigo sem avistar meus companheiros de viagem. Já começo a me sentir inquieto quando o pai da moça propõe-me a compra de haxixe. Digo-lhe que não estou interessado, mas que meus amigos estavam. Ele então me leva de volta ao grupo e posso dizer triunfante a Edmar e Nelson: “Encontrei o homem do haxixe!”. Os dois, que só falavam disso a viagem inteira, empalidecem. Não esperavam por esse serviço de delivery.

Logo depois, Edmar, sentado ao meu lado no bar diante da praça, disse-me contente: “Me encantam as pessoas que vêem para vá, se drogam, e ficam por aqui, se destruindo lentamente. Os Guarás que ficaram!”. Eu engolia meu chá de menta, que fizera Edmar pagar pelos serviços prestados, refletindo até que ponto a droga e o sexo não eram, no Marrocos, apenas dois chamarizes míticos para atrair turísticos. Eu não via nada parecido aqui com a decadência evocada em certos filmes, nem percebia o erotismo decantado pelos escritores homossexuais, de André Gide a Pier Paolo Pasolini, de Joe Orton a Jean Genet. Mesmo Elias Canetti precisou recorrer a uma história de alcova para registrar algo de mais excitante em As vozes de Marrakesh.

Os homens marroquinos amavam-se mais do que o comum: os jovens sempre andavam abraçados. Mas isso se explicava por uma fraternidade ostensiva contra os pais autoritários. No Marrocos, é o pai quem educa o filho para que herde seu nome, obrigando-o ao respeito das tradições. A educação é severa, implicando em surras com vara. Por isso o filho só ama a mãe, a quem pede dinheiro. O pai é uma besta negra, um monstro. Daí o apego aos amigos: vimos até dois jovens na estrada, cada um na sua bicicleta, agarrados um ao outro, sob o risco de caírem de seus veículos. Mas essa amizade masculina não se expande para o terreno da sexualidade, que permanece o maior tabu, nem diminui o machismo dos homens marroquinos: sob o pretexto de serem sagradas, as mulheres sofrem as maiores restrições sociais.

Levamos quase quatro horas na viagem de Marrakesh a Ouarzazate. Pouco a pouco, fui sendo tomado pela angústia do deserto. As paisagens sem cor, sem vida, sem gente ofereciam apenas a visão árida de montanhas de pedras. Aqui e ali casas de argila, pastores de ovelhas, meninos conduzindo camelos. Geraldo, que insistia desde São Paulo em ser fotografado junto a um camelo, ficou radiante ao avistar os bichos. Paramos para as fotos. Mais tarde, ele ainda nos mostrava um postal de camelos que encontrara numa tabacaria: “Um camelal”, exclamava, sorrindo como uma criança.

Admirei a beleza dos Atlas, vistos pela estrada sinuosa de 1675 curvas, a uma altura de mais de mil metros, que, sem nenhuma proteção, nosso motorista percorria, impassível diante dos abismos e dos precipícios. Rubens comentou: “Só falta o Fonseca ser o único sobrevivente!”. As curvas fechadas, a conversa sussurrada, o fumo que impregna o ar já rarefeito e a música árabe repetitiva que Youssef insiste em colocar no seu gravador – tudo me enjoava. Eu via os cactos subindo pelas montanhas, as cabras sustentando-se nas escarpas e os montanheses recostados nos casebres de argila e palha de trigo como restos de vida que se agarravam aonde podiam, até se extinguirem completamente. Tinha a impressão de um vazio devorando tudo, e subitamente percebi o efeito das miragens. Elas vinham como uma projeção da consciência evocada pelo vazio, como as últimas reservas da imaginação que não queria acabar assim.

Chegar a Ouarzazate foi como chegar a um oásis. As casas ocres, as construções em arcos, aquela pequena civilização germinando com seus bares, cinemas e hotéis – essa aparição de algo no meio do nada revigora os sentidos. No hotel Club Karam turistas francesas em topless tomam sol numa indolência generalizada. Olho um canteiro de flores e vejo a terra rachada: “Flores esturricadas!”, comenta Geraldo. As pessoas vêem no inverno de Paris para Ouarzazate em vôos diretos, em busca do sol. Não há nada a fazer aqui, exceto tomar sol. Eu procuro em vão um companheiro de escândalo.

Depois do almoço, visitamos a Kasbah do século XVIII, feita de argila e palha, que guarda o calor. Ali, as mulheres só podiam observar os espetáculos que se davam no pátio através das grades das janelas. O quarto da favorita é sempre o mais ricamente decorado, assim como o seu túmulo. Nesta Kasbah, há um curioso “interfone” – uma espécie de encanamento retangular que fazia o som ecoar através dos cômodos – através do qual o paxá falava de um andar a outro. Já que lamentavelmente não nos foi permitido conhecer Fez, chegamos, enfim, ao ponto mais fantástico de nossa visita ao país: uma Kasbah antiqüíssima e monumental erguida no deserto, como se, durante alguma noite mágica, a terra tivesse sonhado, e esse sonho se tivesse tornado realidade.

Ao voltarmos de Ouarzazate, passamos por um grupo de pessoas que observavam o infinito. Imaginamos que elas olhavam as estrelas e pusemos também a mirar o firmamento, enquanto Rubens puxava um cordão musical entoando sucessos da Bossa Nova. Mais tarde soubemos que naquele trecho da estrada caíra um ônibus carregado de turistas franceses: todos haviam morrido.  As pessoas não estavam mirando estrelas, mas cadáveres destroçados.

Chegou, enfim, a minha vez de passar mal. Embora comendo pouco, à noite tenho vômitos e diarréias. Desço às três da manhã até a portaria do hotel. O responsável diz que está desolado, mas não tem remédio. Como desolação não cura, uma ânsia incontrolável me leva a sujar o tapete. O atendente resolve então chamar o médico, que chega meia hora depois. Trata-se, na verdade, de um jovem residente, que queria dar-me uma injeção usando uma seringa velha e usada, sem ter sequer álcool e algodão. Propõe usar meu perfume francês como desinfetante. Como a idéia não me entusiasma, receita-me comprimidos e cobra-me 20 dólares pela visita. Promete voltar se eu não melhorar.

Uma hora depois, os fluidos do meu corpo recomeçam a fugir. Olho para o espelho e vejo um fantasma. Torno a chamar o residente. Ele agora traz álcool, algodão e uma seringa descartável (que deve ter comprado com parte dos meus 20 dólares). Mas sem aquela borrachinha para pressionar minha veia, faz força com as mãos. Espeta primeiro meu braço direito, depois o esquerdo, à procura de uma veia, em vão. Eu sangrava e tinha os braços arroxeados. Abatido, eu reclamava em francês, sentindo-me como um junkie agonizando depois da última picada. Tudo tinha para mim o sentido horrível de uma iniciação.

Com o infarto de Fonseca, a diarréia generalizada, a estrada à beira do abismo e a minha forte intoxicação, Rubens começou a desenvolver uma teoria conspiratória. “Querem acabar com a crítica! Envenenaram a comida, levaram-nos à estrada mais perigosa. E agora, qual será o próximo passo?”. Havia algum temor real na piada: Rubens era tremendamente supersticioso: à mesa, jamais passava o sal a outra pessoa, “para não secá-la”; ficou assustado quando, no almoço, contou treze à mesa, logo se aliviando com a lembrança de que a desgraça só ocorria ao mais velho ou ao mais novo, estando ele fora de perigo. A melhor definição de Rubens havia sido dada por Edmar: “Adoro o Rubens, mas ele é um turista da condição humana. Nunca mergulha fundo, nunca se perde no vício.”. Da mesma forma, a melhor definição de Edmar fora dada por Rubens: ”Adoro o Edmar, mas quando ele cisma com alguma coisa, começa a inventar teorias absurdas, que defende com uma coerência absoluta, e se você as contesta, ele inventa teorias ainda mais absurdas.”

No ônibus a caminho de Casablanca sento-me ao lado de Maria Emilia. Entre uma gargalhada e outra, ela nos transmitia informações corriqueiras como se fossem segredos de Estado. Pessimista, achava sempre que o pior estava para acontecer. Também recebia todas as broncas do grupo e, como um pára-raios, vivia num estado de tensão e desânimo permanentes. Só o sexo poderia aliviá-la. Mas ela tentava em vão. “Voltarei pura para o Rio”, não cansava de se queixar, entre risadas histéricas. O jovem repórter do Estado esperava sempre Maria Emília aparecer para o jantar com medo nos olhos: “Ih…!”, dizia-me, “a Maria Emília vai chegar toda emperiquitada!”. De fato, depois de uma excursão exaustiva, ela retornava refeita, num outro modelo verde de pano áspero, enforcada num colar de metal brilhoso, que lhe caí até os joelhos. Outra noite, voltando para o quarto, Geraldo e eu tomávamos o elevador quando ela veio correndo atrás de nós, tentando nos alcançar: “Esperem por mim…!”. Mais que depressa, Geraldo sussurrou: “Nem morta!”, pressionando com força o botão que fechava a porta.

No ônibus a caminho de Casablanca, sentada a meu lado Maria Emília me fala do Papa João XXIII e do dia em que quase foi violentada em Roma; de suas dores de rins e de seu desejo de ser seduzida por um milionário; das orações que os muçulmanos são obrigados a fazer e de suas íntimas fantasias eróticas; no auge da carência, ela me confessa de repente, num gemido entrecortado de risos nervosos: ”Eu já não sei quem sou!”.

Casablanca é uma cidade moderna, mas não deixa de ter seu encanto. Todas as edificações são como indica seu nome: de cor branca. É um entreposto comercial, com bairros residenciais luxuosos. Há um palácio enorme com uma passagem subterrânea de sete quilômetros que dá diretamente numa praia particular. O mar é bravio, há poucas margens para os banhistas. Mas os cafés a beira-mar são mistos e agradáveis. Passo por Casablanca como que por um sonho. Ainda enfraquecido, sou apenas a sombra de mim mesmo. Mas ao tirar fotografias num lambe-lambe da Praça das Nações Unidas, sinto-me revigorado. Edmar comenta: “O Nazario se recuperou depressa!”. Depois, achando-me bem em todas as fotos, exclamou no ônibus: “O Luiz Nazario é a Sônia Braga! Nas fotos ele fica alto, bonito…”. (Mais tarde mostrei a meu irmão médico a receita do remédio que o residente marroquino me injetou: ele me disse que a dose seria mais indicada para curar um cavalo…).

No mercado popular, compro caftans típicas, almofadas, tapetes e maravilhosas caixinhas de madeira marchetada. No hotel adquiro o Corão na edição da Pléiade para entender essa estranha religião que mantém os povos que a adotam numa eterna Idade Média. Em toda parte, constato a verdade de uma observação de Youssef: as pessoas aqui são pobres, mas não miseráveis. Há lugares onde se pode comer e beber por um dirham. Assim, ninguém morre de fome. E essa perspectiva alegra o povo. Não se vê, mas ruas, o espetáculo da gente-trapo se decompondo nas sarjetas, tão familiar entre nós. Os marroquinos trabalham pouco e se divertem na pobreza. Por isso tampouco há progresso…

Em nosso último almoço, Geraldo observa que, na outra mesa, as jornalistas de turismo estão se divertindo muito, e pela primeira vez parecem mais alegres que nós. “Não podemos ficar por baixo”, argumenta. E, subitamente, começamos todos a rir sem motivo, numa hilaridade que começou por provocação e terminou incontrolável. Toninho, que não ouviu a proposta, fica aflito por ter perdido a piada. É difícil explicar-lhe que, aqui, a piada é o nosso próprio riso orquestrado.

De volta a São Paulo, concluo ter feito uma viagem programada do começo ao fim, sem surpresas nem explorações pessoais. Mas uma frase de Kathleen Turner, explicando como foi rodar as engraçadas cenas da corrida de trem em As jóias do Nilo, no Marrocos, onde a vemos balançando as pernas, dependurada num vagão, acaba por me livrar de todas as decepções: “É claro que eu estava amarrada por uma porção de cordas e não havia perigo de cair. Mas depois você volta para casa e se pergunta se todo mundo faz esse tipo de coisa.”.

Luiz Nazario e Antonio Gonçalves Filho em Casablanca. Foto: Lambe-lambe.

NICO PAPATAKIS

Nascido em Addis Ababa, na Etiópia, em 1918, de um pai grego e de uma mãe abissínia, levados ao exílio por Benito Mussolini, Niko Papatakis sobreviveu como camareiro na Grécia sob a ditadura de Metaxas, tornando-se depois modelo para pintores e aventureiro. Odocumentário Nico Papatakis, portrait d’un franc-tireur (Grécia, 2009, 45’, doc, cor), de Timon Koulmasis e Iro Siafliaki, parece revelar a história secreta que liga Nico Papatakis a Christa Päffgen, lançada como cantora do Velvet Underground por Andy Warhol: o fotógrafo Herbert Tobias teria homenageado seu ex-namorado Papatakis apelidando a modelo de “Nico”.

Papatakis chegou a Paris em 1939. Em 1947, ele criou La Rose Rouge, um cabaré onde, entre outros, apresentavam-se o surrealista Raymond Queneau, com seus “exercícios de estilo”, e a cantora existencialista Julliete Greco, que havia sido presa pela Gestapo por suas atividades de resistência. Em 1950, Papatakis abandonou o cabaré e, decidido a montar espetáculos revolucionários, lançou-se na produção de filmes: depois de desenhos animados de Henri Gruel, produziu o célebre manifesto homossexual de Jean Genet, Un Chant D’Amour (Um canto de amor, França, 1950, p&b, mudo), o primeiro filme a mostrar o sexo masculino em ereção, um curta-metragem rodado clandestinamente, e que por 25 anos permanecerá proibido.

Nos Estados Unidos, Papatakis encontrou John Cassavetes e ajudou-o a produzir Shadows. De volta a Paris, tentou adaptar para a tela o livro de Henri Alleg, La Question (A tortura).  Jean-Paul Sartre aceitou escrever o roteiro e Alain Resnais concordou em filmar, mas o projeto não foi adiante. Papatakis tentou então convencer Genet a adaptar sua peça As criadas com o intuito de manifestar sua revolta contra a guerra da Argélia. A história das irmãs Papin poderia servir, a seu ver, para uma alegoria da insurreição argelina. Mas foi Jean Vauthier quem acabou assinando o roteiro de Les Abysses (França, 1963, 90’, p&b).

Nesta impactante versão, as irmãs Michèle e Marie-Louise trabalham numa decadente propriedade vinícola que seus patrões tentam vender ao futuro genro. Ligadas por um amor incestuoso, elas se mostram histéricas por não receberem seus salários há três anos. Permanecem no emprego pela esperança da paga atrasada e também pelo prazer em extravasar seus rancores nos patrões, praticando toda espécie de maldade, até o cúmulo de matar a patroa e a filha do patrão quando este fecha o contrato para a venda da propriedade.

Papatakis declarou: “Como nenhum cineasta da Nouvelle Vague aceitou rodar esse filme, eu mesmo decidi filmar […]. Como eu tinha visto no Actors Studio, exerci pressões morais sobre minhas atrizes a fim de colocá-las em condição de exteriorizar uma dor psíquica. Jamais trabalhei na cumplicidade, e sim na oposição. Minhas filmagens sempre foram tensas artificialmente, a fim de que a imagem se beneficiasse desse clima”. Papatakis obteve das irmãs Bergé – como de todo o elenco – desempenhos exasperados e expressionistas, mas esse filme extraordinário foi exibido apenas em pequenas salas por ser então considerado muito violento.

Quando André Malraux enviou Les Abysses para representar a França no Festival de Cannes, o presidente do Sindicato dos Produtores pediu demissão. Les Abysses foi recusado pelo comitê de seleção do Festival. André Breton, Jean Genet, Jacques Prévert, Sartre e Simone de Beauvoir tomaram a defesa do filme, elogiando a polêmica realização de Papatakis.

Sartre escreveu um artigo, que foi reproduzido em diversos jornais, notadamente no Le Monde: “O cinema nos dá sua primeira tragédia: Les Abysses” [1]. Mais tarde, Simone reafirmou seu apreço pelo filme em Tout compte fait (Balanço final): “Magnífico e estranho filme onde a razão está do lado da loucura, o paraíso no mais profundo do inferno, onde o amor é pintado sob a figura do ódio. Ele mostra a revolta nua. Papatakis conseguiu a proeza de salvar o horror pela beleza sem jamais traí-la: sem que ela deixe de ser horrível. Um dos maiores filmes que eu já vi.”

Papatakis rodou na Grécia, durante a ditadura dos coronéis, Oi voskoi / Les Pâtriers du Désordre (Grécia / França, 1967, p&b), um filme que foi elogiado por Michel Foucault e Claude Lévy-Strauss. Katina, uma grega empobrecida, tenta casar seu filho adotivo Thanos com Despina, a filha de um homem rico. Mas o pai de Despina, Vlahopoulos, recusa dar a benção, preferindo que ela se case com o rico Yankos. O mimado Yankos tenta romper o relacionamento romântico entre Thanos e Despina, e os amantes planejam a fuga.

A impossibilidade de adaptar La Question não afastou Papatakis da ideia de um filme sobre a tortura: ele a abordou de forma alegórica em Gloria Mundis (França, 1976, 130’, cor), onde uma atriz (Olga Karlatos) interpreta uma terrorista argelina torturada por pára-quedistas franceses num filme que permanece inacabado. Para melhor encarnar o papel, a atriz se tortura, e a fusão de ficção e realidade faz de sua vida um inferno.

O filme foi retirado de cartaz depois que duas bombas foram colocadas nas salas que o exibiam. Foi reeditado e relançado em 2005, com meia hora a menos, outra trilha sonora e duas novas sequências: a da abertura, onde o instrutor de um curso de tortura encoraja soldados a cometerem toda atrocidade que seu patriotismo inspirar, e a da ponte parisiense de onde tombam corpos, em alusão à repressão anti-argelina de 17 de outubro de 1961.

La Photo / I Fotografia (1987) trata das dificuldades de integração dos exilados. Segundo a sinopse do filme, um jovem grego, passando por dificuldades sob a ditadura, deixa seu país em 1971 para viver na França, onde espera encontrar um parente distante que ali vive desde os anos de 1950. Consigo leva apenas uma fotografia. Ele tenta  encontrar trabalho em Paris. Mas um mal-entendido sobre a fotografia gera eventos dramáticos.

Les Equilibristes (França, 1992, 120’, cor), com Michel Piccoli (Marcel Spadice) e Lilah Dadi (Franz-Ali Aoussine), uma homenagem a Abdallah, jovem árabe que se matou depois de ter sido repudiado por seu amante, Jean Genet, foi o último filme do transgressor, romântico e independente produtor e diretor Papatakis.

Em 2003, Papatakis publicou, aos 80 anos de idade, suas memórias: Tous les désespoirs sont permis (Todos os desesperos são permitidos, Paris, Fayard, 347p). Escreveu o editor: “Habilidade consumada da narrativa, o autor faz colidir a lembrança e a antecipação das duas metades de sua vida: ele pode assim contemplá-la como um fruto redondo, que oferece ao leitor com mão generosa e distraída, como quem doa maquinalmente o último centavo que lhe resta.”


[1] Le cinéma nous donne sa première tragédie: Les Abysses, Le Monde, 19 abr. 1963, apud CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel (orgs.). Les Écrits de Sartre. Paris: Gallimard, 1970, p. 733-734.