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NICO PAPATAKIS

Nascido em Addis Ababa, na Etiópia, em 1918, de um pai grego e de uma mãe abissínia, levados ao exílio por Benito Mussolini, Niko Papatakis sobreviveu como camareiro na Grécia sob a ditadura de Metaxas, tornando-se depois modelo para pintores e aventureiro. Odocumentário Nico Papatakis, portrait d’un franc-tireur (Grécia, 2009, 45’, doc, cor), de Timon Koulmasis e Iro Siafliaki, parece revelar a história secreta que liga Nico Papatakis a Christa Päffgen, lançada como cantora do Velvet Underground por Andy Warhol: o fotógrafo Herbert Tobias teria homenageado seu ex-namorado Papatakis apelidando a modelo de “Nico”.

Papatakis chegou a Paris em 1939. Em 1947, ele criou La Rose Rouge, um cabaré onde, entre outros, apresentavam-se o surrealista Raymond Queneau, com seus “exercícios de estilo”, e a cantora existencialista Julliete Greco, que havia sido presa pela Gestapo por suas atividades de resistência. Em 1950, Papatakis abandonou o cabaré e, decidido a montar espetáculos revolucionários, lançou-se na produção de filmes: depois de desenhos animados de Henri Gruel, produziu o célebre manifesto homossexual de Jean Genet, Un Chant D’Amour (Um canto de amor, França, 1950, p&b, mudo), o primeiro filme a mostrar o sexo masculino em ereção, um curta-metragem rodado clandestinamente, e que por 25 anos permanecerá proibido.

Nos Estados Unidos, Papatakis encontrou John Cassavetes e ajudou-o a produzir Shadows. De volta a Paris, tentou adaptar para a tela o livro de Henri Alleg, La Question (A tortura).  Jean-Paul Sartre aceitou escrever o roteiro e Alain Resnais concordou em filmar, mas o projeto não foi adiante. Papatakis tentou então convencer Genet a adaptar sua peça As criadas com o intuito de manifestar sua revolta contra a guerra da Argélia. A história das irmãs Papin poderia servir, a seu ver, para uma alegoria da insurreição argelina. Mas foi Jean Vauthier quem acabou assinando o roteiro de Les Abysses (França, 1963, 90’, p&b).

Nesta impactante versão, as irmãs Michèle e Marie-Louise trabalham numa decadente propriedade vinícola que seus patrões tentam vender ao futuro genro. Ligadas por um amor incestuoso, elas se mostram histéricas por não receberem seus salários há três anos. Permanecem no emprego pela esperança da paga atrasada e também pelo prazer em extravasar seus rancores nos patrões, praticando toda espécie de maldade, até o cúmulo de matar a patroa e a filha do patrão quando este fecha o contrato para a venda da propriedade.

Papatakis declarou: “Como nenhum cineasta da Nouvelle Vague aceitou rodar esse filme, eu mesmo decidi filmar […]. Como eu tinha visto no Actors Studio, exerci pressões morais sobre minhas atrizes a fim de colocá-las em condição de exteriorizar uma dor psíquica. Jamais trabalhei na cumplicidade, e sim na oposição. Minhas filmagens sempre foram tensas artificialmente, a fim de que a imagem se beneficiasse desse clima”. Papatakis obteve das irmãs Bergé – como de todo o elenco – desempenhos exasperados e expressionistas, mas esse filme extraordinário foi exibido apenas em pequenas salas por ser então considerado muito violento.

Quando André Malraux enviou Les Abysses para representar a França no Festival de Cannes, o presidente do Sindicato dos Produtores pediu demissão. Les Abysses foi recusado pelo comitê de seleção do Festival. André Breton, Jean Genet, Jacques Prévert, Sartre e Simone de Beauvoir tomaram a defesa do filme, elogiando a polêmica realização de Papatakis.

Sartre escreveu um artigo, que foi reproduzido em diversos jornais, notadamente no Le Monde: “O cinema nos dá sua primeira tragédia: Les Abysses” [1]. Mais tarde, Simone reafirmou seu apreço pelo filme em Tout compte fait (Balanço final): “Magnífico e estranho filme onde a razão está do lado da loucura, o paraíso no mais profundo do inferno, onde o amor é pintado sob a figura do ódio. Ele mostra a revolta nua. Papatakis conseguiu a proeza de salvar o horror pela beleza sem jamais traí-la: sem que ela deixe de ser horrível. Um dos maiores filmes que eu já vi.”

Papatakis rodou na Grécia, durante a ditadura dos coronéis, Oi voskoi / Les Pâtriers du Désordre (Grécia / França, 1967, p&b), um filme que foi elogiado por Michel Foucault e Claude Lévy-Strauss. Katina, uma grega empobrecida, tenta casar seu filho adotivo Thanos com Despina, a filha de um homem rico. Mas o pai de Despina, Vlahopoulos, recusa dar a benção, preferindo que ela se case com o rico Yankos. O mimado Yankos tenta romper o relacionamento romântico entre Thanos e Despina, e os amantes planejam a fuga.

A impossibilidade de adaptar La Question não afastou Papatakis da ideia de um filme sobre a tortura: ele a abordou de forma alegórica em Gloria Mundis (França, 1976, 130’, cor), onde uma atriz (Olga Karlatos) interpreta uma terrorista argelina torturada por pára-quedistas franceses num filme que permanece inacabado. Para melhor encarnar o papel, a atriz se tortura, e a fusão de ficção e realidade faz de sua vida um inferno.

O filme foi retirado de cartaz depois que duas bombas foram colocadas nas salas que o exibiam. Foi reeditado e relançado em 2005, com meia hora a menos, outra trilha sonora e duas novas sequências: a da abertura, onde o instrutor de um curso de tortura encoraja soldados a cometerem toda atrocidade que seu patriotismo inspirar, e a da ponte parisiense de onde tombam corpos, em alusão à repressão anti-argelina de 17 de outubro de 1961.

La Photo / I Fotografia (1987) trata das dificuldades de integração dos exilados. Segundo a sinopse do filme, um jovem grego, passando por dificuldades sob a ditadura, deixa seu país em 1971 para viver na França, onde espera encontrar um parente distante que ali vive desde os anos de 1950. Consigo leva apenas uma fotografia. Ele tenta  encontrar trabalho em Paris. Mas um mal-entendido sobre a fotografia gera eventos dramáticos.

Les Equilibristes (França, 1992, 120’, cor), com Michel Piccoli (Marcel Spadice) e Lilah Dadi (Franz-Ali Aoussine), uma homenagem a Abdallah, jovem árabe que se matou depois de ter sido repudiado por seu amante, Jean Genet, foi o último filme do transgressor, romântico e independente produtor e diretor Papatakis.

Em 2003, Papatakis publicou, aos 80 anos de idade, suas memórias: Tous les désespoirs sont permis (Todos os desesperos são permitidos, Paris, Fayard, 347p). Escreveu o editor: “Habilidade consumada da narrativa, o autor faz colidir a lembrança e a antecipação das duas metades de sua vida: ele pode assim contemplá-la como um fruto redondo, que oferece ao leitor com mão generosa e distraída, como quem doa maquinalmente o último centavo que lhe resta.”


[1] Le cinéma nous donne sa première tragédie: Les Abysses, Le Monde, 19 abr. 1963, apud CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel (orgs.). Les Écrits de Sartre. Paris: Gallimard, 1970, p. 733-734.