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ANATOLE LITVAK

Tudo isso e o céu também

Anatole Litvak nasceu em Kiev, na Ucrânia, filho de pais judeus. Iniciou sua carreira artística como ator em 1915, atuando num teatro experimental em São Petersburgo. Ainda adolescente ele viveu a Revolução Russa, que levou à estatização de todos os teatros e escolas de teatro do país. Nesse momento, Litvak decidiu deixar o teatro e passar para o cinema.

Trabalhou primeiro no estúdio Leningrad Nordkino, começando como cenógrafo, passando depois à direção de curtas-metragens como Tatiana (1925). No mesmo ano deixou o país e foi para Berlim, onde editou Die freudlose Gasse (Rua sem alegria, 1925), de Georg Pabst. Dirigiu alguns curtas-metragens antes de dirigir longas-metragens, como a comédia Dolly macht Karriere (1930).

Com a tomada do poder por Hitler em 1933, Litvak imigrou para a França, onde dirigiu L’Équipage (França, 1935) e, em seguida, Mayerling (1936), com Charles Boyer e Danielle Darrieux, que foi um grande sucesso. Altamente elogiado por Frank Nugent, do The New York Times, Litvak foi contratado em 1937  pela Warner Brothers.

O primeiro filme americano de Litvak foi The Woman I Love (1937), estrelado por sua futura esposa Miriam Hopkins. Com sua já vasta experiência no cinema, sua singular vivência dos eventos históricos mais marcantes do século XX e falando correntemente quatro línguas (russo, alemão, francês e inglês), Litvak sentia-se à vontade para abordar qualquer tema em qualquer gênero: o drama histórico Tovarich (1937), o suspense criminal The Amazing Dr. Clitterhouse (1938), o drama romântico The Sisters (As irmãs, 1938).

Quando a França entrou em guerra, em 1939, a censura proibiu uma série de filmes: os filmes de guerra, os filmes “deprimentes” e os filmes militares, mesmo que fossem comédias de vaudeville, que ridicularizavam o exército. Na primeira lista de interditados encontrava-se L’Équipage, que, segundo a censura, incitava o ódio contra a Alemanha.

Ninguém então melhor que Litvak para dirigir o primeiro drama antinazista produzido em Hollywood: Confessions of a Nazi Spy (Confissões de um espião nazista, 1939), com roteiro de Milton Krims e John Wexley, a partir de uma série de artigos de Leon Turrou, publicados em 1938 sob o título Storm Over America, no New York Post. O filme era estrelado por Edward G. Robinson, Francis Lederer e George Sanders.

O perigo nazista era abordado sem recorrer a metáforas, expondo com realismo didático os métodos terroristas do Partido Nazista Norte-Americano. Era uma ousadia dos Irmãos Warner exporem ao grande público uma realidade que Hollywood ainda fingia ignorar. A ação se passa em Nova York, onde agentes nazistas infiltrados tentam minar a confiança do povo na democracia americana. Suas pistas são seguidas por um comissário do FBI.

O filme levantou protestos da Embaixada alemã. Como os nazistas ainda se encontravam muito atuantes na América, realizando grandes comícios no Madison Square Garden, os cinemas que exibiam o filme sofreram ataques com bombas caseiras. Para garantir a segurança dos espectadores, os distribuidores acabaram retirando o filme de cartaz. Hollywood ainda exportava suas produções para o mercado alemão, mas, depois deste filme, os nazistas interromperam a importação de filmes da Warner e o estúdio quase foi à falência.

Ao tornar-se cidadão americano em 1940, Litvak alistou-se no exército. Continuou a dirigir filmes de todos os gêneros, incluindo o policial noir, com Castle on the Hudson (1940) e Out of the Fog (1941). É desta fase um de seus melhores filmes: All This and Heaven Too (Tudo isso e o céu também, 1941).

A pobre governanta Henriette (Bette Davis), que esteve envolvida num processo criminal na Inglaterra, emigra para a América em busca de uma nova vida, provavelmente junto a um pastor (Jeffrey Lynn), que a aborda no navio. Mais tarde, ao assumir o emprego de professora de francês num colégio de meninas, enfrenta o preconceito das alunas, que leram nos jornais notícias escabrosas sobre o affaire.

A professora decide contar-lhes toda a verdade sobre seu passado. A governanta cuidava amorosamente dos três adoráveis filhos (duas meninas e um menino) de um casal problemático. A esposa carente, ciumenta e detestável, empurrava para a traição o gelado marido Duke (Charles Boyer), que não a amava mais. Mas o amor do nobre por Henriette não se consuma, permanecendo platônico até o fim. Diante da perfídia da esposa, que demite a governanta e recusa dar-lhe uma carta de recomendação que poderia tirá-la da miséria, mesmo sabendo-a inocente, o aristocrata enlouquece.

Duke mata a esposa a tiros e, depois, tenta o suicídio. A governanta é suspeita de ter incitado o suposto amante ao crime e é detida para acareação. O aristocrata agonizante protege-a das torpes acusações do tribunal com um silêncio enobrecedor de seu crime. A história de amor infeliz da ex-governanta, narrada no longo flashback que constitui o filme, comove a classe inteira. A professora de francês ganhou, assim, o coração das meninas, e uma nova chance de ser feliz.

Durante a guerra, Litvak colabora com Frank Capra na série de documentários de guerra Why we Fight, entre os quais The Battle of Russia (A Batalha da Rússia, 1943), com imagens exclusivas filmadas pelos soviéticos ou capturadas do inimigo nazista. O filme registra a maior batalha na história de todas as guerras: a Batalha de Stalingrado, na qual mais de duas milhões de pessoas morreram.

A ordem de guerra 227 do governo soviético era: “Nenhum passo atrás! Stalingrado não deve render-se ao inimigo!”. Em fevereiro de 1943, o  Exército Vermelho fez mais de 330 mil prisioneiros – todo o 6º Exército, parte do 4º Exército alemães, incluindo o Marechal Von Paulus e 20 generais. A partir de Stalingrado iniciou-se a contra-ofensiva geral que liberou, uma a uma, todas as regiões ocupadas pelos alemães desde a invasão da URSS em 1941.

O feito foi elogiado pelas mais altas autoridades norte-americanas na guerra:  “Na história, não se conhece maior demonstração de coragem como a demonstrada pelo povo da Rússia.” (Henry L. Stimson, Secretário de Guerra); “Nós e nossos aliados temos e reconhecemos o eterno débito de gratidão, com o exército e o povo da União Soviética” (Frank Knox, Secretário da Marinha);  “A bravura e o espírito lutador e agressivo dos soldados russos requerem toda a admiração das Forças Armadas americanas.” (George C. Marshall, Membro Chefe do Exército dos Estados Unidos);  “Junto-me em admiração pela defesa histórica e heróica da União Soviética.” (Ernest J. King, Comandante-Chefe dos Estados Unidos);  “A escala de grandeza mostrada pela Rússia marcaram-na como o maior sucesso militar de toda a história da humanidade.” (General Douglas MacArthur, Comandante-Chefe da Área do Sudoeste do Pacífico).

O documentário integra a série de sete filmes produzidos por Frank Capra a pedido do governo norte-americano, reunidos sob o título Why We Fight:  1: Prelude to War (1943); 2: The Nazis Strike (1943); 3: Divide and Conquer (1943); 4: The Battle of Britain (1943); 5: The Battle of Russia (1943); 6: The Battle of China (1944); 7: War Comes to America (1945). 

Litvak terminou a guerra com a patente de coronel e voltou a Hollywood para dirigir um thriller sombrio: Sorry, Wrong Number (A vida por um fio, 1947). Esse eletrizante suspense foi tirado de uma peça radiofônica. Para seu desespero, uma inválida (Barbara Stanwiyck) intercepta, numa linha cruzada, os planos que seu marido (Burt Lancaster) elabora para assassiná-la. Pressionado por traficantes, o marido pretende liquidar a esposa naquela mesma noite para obter o dinheiro do seguro: a coitada não pode fugir do quarto e ninguém acredita em sua história. Stanwiyck sustenta o drama – que caminha a passos largos para um desfecho trágico – praticamente sozinha em cena, imobilizada em seu leito, que se torna cada vez mais um leito de morte. Sua performance expressionista é extraordinária.

The Naked Pit (A cova da serpente, 1948) é outro tour-de-force. Uma mulher sofre um colapso nervoso após o casamento e é internada num manicômio. Com a ajuda do marido e do psiquiatra, ela se recupera, depois de testemunhar os maus tratos e as péssimas condições às quais as internas são submetidas. Litvak obtém um clima de loucura através de malabarismos técnicos de grande impacto visual, como na cena em que uma massa de dementes no hospício é vista, a grande altura, num vertiginoso travelling vertical, cercando Olivia de Havilland, perdida como um passarinho entre víboras a se agitar no fundo de um poço. Impactante e ao mesmo tempo cômica é a cena em que o psiquiatra entrevista a paciente aparentemente recuperada, agitando loucamente o dedo em sua direção, estonteando-a e provocando nela uma recaída.

Por este filme, Litvak foi indicado ao Oscar de Melhor Diretor, mas perdeu para John Huston, com The Treasure of the Sierra Madre. Talvez desiludido com isso, em 1949 Litvak retornou à Europa, estabelecendo-se em Paris, e passando a dirigir com intervalos de tempo cada vez maiores.

Anastasia (Anastasia, a princesa esquecida, , 1956), com Ingrid Bergman, sobre uma mulher que alega ser a última descendente direta da Dinastia dos Romanoff, foi um grande sucesso.

Menos conhecido é o drama romântico Goodbye, Again (1961), adaptado da novela Aimez-vous Brahmas?, de Françoise SaganA decoradora Paula Tessier (Ingrid Bergman) mantém um relacionamento estável, mas irregular, com o empresário Roger Demarest (Yves Montand), que a ama com desdém, dedicando toda sua energia à conquista de mulheres mais jovens, visitando ainda, de vez em quando, outra amante, belíssima, com quem compartilha seus problemas. Vivendo de migalhas, Paula não se decide a romper com Roger: ela não consegue deixar de amá-lo, mesmo sabendo-se traída, e alimenta ainda a esperança de que ele a despose e sossegue.

A situação muda quando Paula conhece Philip Van der Besh (Anthony Perkins), filho de uma rica cliente. Esse jovem mimado, depressivo e carente, que vive bebendo  e correndo em seu conversível, apaixona-se num coup de foudre pela madura e tristonha Paula. Cortejada pelo rapaz, Paula tem agora a opção de entregar-se a um novo amor, esquecendo-se de Roger. Contudo, quando este se mostra abalado com o inesperado romance temporão de Paula, ela se dispõe a romper com o jovem Philip, desde que ele a despose. Roger cede ao velho desejo de Paula e os dois agora vivem juntos, como marido e mulher.

Mas a rotina amorosa de Roger não se alterna com o casamento: ele apenas suprimiu de Paula a última chance que ela poderia ter de ser feliz com quem a amava verdadeiramente. Diante do espelho, Paula percebe, enfim, que caiu numa armadilha, assumindo o papel ainda mais deprimente de esposa traída…

A bela fotografia em preto-e-branco de Armand Thirard capta a atmosfera agitada e melancólica da Paris das caves existencialistas. Banhado na Terceira Sinfonia de Brahms, com arranjos de Georges Auric, o filme traz um trio de atores magníficos dirigidos com elegância pelo mestre Litvak, que demonstra com clareza didática como as mulheres são usadas pelos homens com a ajuda de outras mulheres, e como o casamento, instituição sagrada e falida, tornou-se um mero álibi para os homens, mas uma trágica armadilha para as mulheres.

The Night of the Generals (A  noite dos generais, 1967), que Litvak realizou na Inglaterra, constitui um híbrido entre o filme noir e o filme de guerra. Uma prostituta é brutalmente assassinada em Varsóvia. O major Grau (Omar Sharif), encarregado do caso, possui apenas uma pista: uma testemunha viu o criminoso usando um uniforme alemão, mas não viu seu rosto. Grau tem três suspeitos: os generais Kahlenberge (Donald Pleasance) e Von Seidlitz-Gabler (Charles Gray) e o oficial Tanz (Peter O’Toole), todos sem álibi. Subitamente Grau é promovido a tenente-coronel, sendo transferido para Paris por indicação de Kahlenberge.

O destino reúne os três suspeitos em Paris pouco antes do Dia D.  Ajudado pelo inspetor Morand (Philippe Noiret), um simpatizante da Resistência, Grau continua ali suas investigações, por conta própria. O filme destaca um caso criminal durante o Holocausto e descreve a liquidação do gueto judeu com um realismo que pode ter inspirado Spielberg em Schindler’ListRelevante também é a encenação de uma reunião neonazista em Berlim nos anos de 1960, que recorda as reuniões nazistas que Litvak havia descrito, corajosamente, em Confessions of a Nazi Spy. Um ciclo que se fecha, e outro que se inicia. 

Anatole Litvak morreu num hospital de Neuilly, em Paris, em dezembro de 1974.

Filmografia parcial

Tatiana (1925). Direção: Anatole Litvak.

Dolly macht Karriere (1930). Direção: Anatole Litvak.

L’Équipage (França, 1935, p&b). Direção: Anatole Litvak.

Mayerling (1936). Direção: Anatole Litvak. Com Charles Boyer e Danielle Darrieux.

The Woman I Love (1937). Com Miriam Hopkins.

Tovarich (1937). Direção: Anatole Litvak.

The Sisters (As irmãs, EUA, 1938, p&b, drama). Direção: Anatole Litvak. Com Bette Davis, Errol Flynn.

The Amazing Dr. Clitterhouse (1938). Direção: Anatole Litvak.

Confessions of a nazi spy (Confissões de um espião nazista, EUA, 1939, 104’, p&b, espionagem, nazismo). Direção: Anatole Litvak. Roteiro: Milton Krims e John Wexley, a partir de uma série de artigos de Leon Turrou, publicados em 1938 sob o título Storm Over America, no The New York Post. Com Edward G. Robinson, Francis Lederer, George Sanders.

Castle on the Hudson (1940). Direção: Anatole Litvak.

Out of the Fog (1941). Direção: Anatole Litvak.

All This and Heaven Too (Tudo isso e o céu também, EUA, 1941). Direção: Anatole Litvak. Com Bette Davis, Jeffrey Lyne, Charles Boyer.

This Above All (1942). Direção: Anatole Litvak.

The Battle of Russia (A Batalha da Rússia, EUa, 1943, 128′, p&b, doc). Direção, Produção: Anatole Litvak. Produção: Frank Capra. Roteiro: Anatole Litvak, Frank Capra, Robert Heller, Anthony Veiler. Trilha Sonora: Dimitri Tiomkin. Edição: William Hornbeck. Narração: Anthony Veiller, Walter Huston.

Sorry, Wrong Number (A vida por um fio, 1947, 89’, p&b, noir, suspense). Direção: Anatole Litvak. Com Barbara Stanwyck, Burt Lancaster.

The Snake Pit (A Cova da Serpente, 1948, 107’, p&b. drama). Direção: Anatole Litvak. Com Olivia de Havilland, Mark Stevens, Leo Genn, Celeste Holm, Helen Craig.

Anastasia (Anastasia, a princesa esquecida, 1956). Direção: Anatole Litvak.

The Journey (Crepúsculo vermelho, EUA, 1959, 126’, cor). Direção: Anatole Litvak. Com Yul Brynner, Deborah Kerr, Jason Robards Jr., Robert Morley, E. G. Marshall, Anne Jackson, Ronny Howard, Flip Mark, Kurt Kasznar, David Kossoff, Marie Daems, Barbara Von Nady.

Goodbye Again (EUA / França, 1961, 120′, p&b, drama). Direção, Produção: Anatole Litvak. Adaptação da novela de Françoise Sagan, Aimez-vous Brahmas? Com Ingrid Bergman, Yves Montand, Anthony Perkins, Jessie Rouce Landis.

The Night of the Generals (A noite dos generais, Inglaterra / EUA, 1967, 144’, cor, guerra, Holocausto). Direção: Anatole Litvak. Produção: Columbia Pictures Corporation / Filmsonor S.A. / Horizon Pictures / Anatole Litvak, Sam Spiegel. Roteiro: Paul Dehn, Joseph Kessel, baseado em livro de Hans Hellmut Kirst. Música: Maurice Jarre. Fotografia: Henri Decaë. Desenho de Produção: Alexandre Trauner. Direção de Arte: Auguste Capelier. Figurino: Rosine Delamare, Jean-Claude Philippe. Edição: Alan Osbiston. Elenco: Peter O’Toole (General Tanz), Omar Sharif (Major Grau), Tom Courtenay (Kurt Hartmann), Donald Pleasence (General Kahlenberg), Joanna Pettet (Ulrike von Seydlitz-Gabler), Philippe Noiret (Inspetor Morand), Charles Gray (General von Seydlitz-Gabler), Coral Browne (Eleanore von Seydlitz-Gabler), John Gregson (Coronal Sandauer), Nigel Stock (Sargento Otto Kopkie), Christopher Plummer (Marechal Rommel) Juliette Gréco (Juliette), Yves Brainville (Liesowski), Sacha Pitoëff (Médico), Charles Millot (Wionczek), Raymond Gérôme (Coronel), Véronique Vendell (Monique Demond), Pierre Mondy (Sargento Kopatski), Harry Andrews (General Stulpnagel).