JOHN STURGES

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Jeopardy (EUA, 1953, 69’, p&b, noir, suspense). Direção: John Sturges. Produção: Sol Baer Fielding / Metro-Goldwyn-Mayer. Roteiro: Mel Dinelli, a partir da peça de rádio A Question of Time (22’), de Maurice Zimm. Com Barbara Stanwyck, Barry Sullivan, Ralph Meeker, Lee Aaker. Trilha: Dimitri Tiomkin. Fotografia: Victor Milner. Edição: Newell Kimlin.

Para aproveitar o fim de semana, Doug Stilwin (Barry Sullivan) e sua esposa Helen (Barbara Stanwyck), que narra a história, vão com o filho pequeno Bobby (Lee Aaker) pescar numa praia isolada da Baja California, no México. Doug quer reviver um bom momento quando jovem militar ali pescara com um camarada.

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O filho ignora a placa “Peligro” sobre o cais apodrecido e acaba prendendo o pé numas tábuas, e o pai, ao tentar resgatá-lo, cai com parte da estrutura, ficando com uma das pernas presa sob uma tora enorme e inamovível. A maré alta ameaça afogá-lo. A esposa, guiando o carro como uma louca varrida, busca socorro, mas os matutos mexicanos não entendem seu espanhol todo errado.

Helen pensa encontrar ajuda na figura de um americano que lhe aparece de repente à frente, mas ele a sequestra e não pretende ajudá-la em nada. Lawson (Ralph Meeker) não passa de um belo e cínico assassino escapado da prisão e procurado pela polícia mexicana. Mas essa é tão incompetente que, ao passar por Lawson fingindo dormir no ombro de Helen com uma arma encostada em seu flanco, de nada desconfia.

Além de atraente, Lawson é habilidoso: escapa facilmente da polícia, consegue trocar o pneu furado do carro sem o macaco, esquiva-se quando Helen tenta canhestramente matá-lo com uma barra de ferro. Depois, notando as habilidades do bandido, a mulher pergunta-lhe quanto tempo ele passou na prisão.

O ardor sexual dos anos sem sexo faz Lawson desejar intensamente a mulher. Helen promete entregar-se se ele a ajudar (“Eu faria qualquer coisa para salvar meu marido! Qualquer coisa!”). Ela finalmente o convence oferecendo-lhe ainda os documentos do marido para que Lawson possa escapar da polícia mexicana.

Lawson prova mais uma vez sua habilidade masculina conseguindo salvar o marido encalhado usando uma viga enorme como alavanca. Helen diz que está pronta para partir com ele, cumprindo sua palavra, mas ele desiste de possui-la e a devolve ao marido, que permanece alheio a tudo após quase morrer afogado.

Helen, que jurou odiar Lawson todos os dias de sua vida, acaba por livrá-lo da polícia mexicana escondendo o carro que os agentes abobalhados procuram, e aperta a mão do assassino habilidoso na despedida, como a selar um pacto estranho.

O menino Bobby, que não entende nada, mas intui alguma coisa, afirma ao ver o charmoso bandido partir no horizonte: “Ele é um grande homem!”. Helen conclui sua narrativa perguntando o que fariam outras esposas nessa situação.

O filme custou 589 mil dólares e rendeu mais de 1,6 milhão, um sucesso surpreendente. O diretor Sturges elaborou um acintoso paralelo entre a impotência sexual/homossexualidade do marido e a potência sexual/virilidade do bandido.

O marido sonha em reviver um momento feliz que teve com um camarada de sua juventude miliar (“Aquele sim foram bons tempos!”, diz inconscientemente à esposa). Ele fica deitado na areia enquanto a esposa cozinha, e é ela que deita sobre ele para beijá-lo. A comida fica pronta, mas ele não come: tem que socorrer o filho que prendeu a perna numa tábua do cais.

Durante boa parte do filme Doug fica encalhado, impotente, naquela praia fantasma: o passado é uma ruína, o velho cais (as lembranças douradas de sua juventude) é sustentado por um tronco podre (símbolo de um falo impotente) e ele permanece ali paralisado com o pé preso, infantilizado, como o filho que também prendera o pé e que ele fora tentar salvar, caindo na mesma armadilha.

O bandido escapado da prisão é um jovem inquieto, livre de amarras, com habilidades masculinas excitantes: dirige o veículo em alta velocidade, troca o pneu do carro sem o macaco, engana facilmente a polícia e arrebata a mulher beijando-a na boca com gosto e vontade. Esse macho alfa prova ainda sua potência salvando o marido quase afogado usando como alavanca uma enorme viga (símbolo de um falo vigoroso).

Helen, acomodada no matrimônio, mas algo insatisfeita, pois mais inteligente que o marido, pode ou não ter sido estuprada, mas está disposta a abandonar Doug e o filho aborrecido para seguir o bandido, alegando que “cumpre suas promessas”. Jeopardy é uma obra-prima de ambiguidades e alusões sexuais inquietantes como só o Código de Produção e os diretores que os transgrediam eram capazes de gerar.

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ANTONI GAUDÍ

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Acabo de ver o documentário Antoni Gaudí (1984). Que gênio imenso, inacreditável, foi esse arquiteto catalão. Pena que eu não tenha podido ver tudo dele quando estive em Barcelona. Visitei o Parque Güell, a Sagrada Família, algumas de suas Casas, mas não todas… Que desgraça, tão curta é a vida humana! No filme, há o depoimento de um discípulo:

Tivemos a nossa guerra civil que destruiu a maquete da Sagrada Família. Tivemos que reconstruir tudo de cabeça… Foi um trabalho enorme, gastamos muito tempo… Gaudí era vaidoso quando jovem, gostava de comer bem, de se vestir bem, mas antes de criar a Sagrada Família ele decidiu se purificar, creio… Pois fez um jejum, como Cristo, e ficou quinze, vinte dias sem comer… Emagreceu demais, e teve que ser retirado da cama, pois estava para morrer.

Para Gaudí, a arquitetura devia ser uma continuação da natureza, um prédio devia ser como uma árvore, que cresce em espiral, num movimento contínuo: Tudo está na natureza, o homem não cria nada que já não esteja dentro dele.” Durante dez anos Gaudí estudou o equilíbrio das estruturas, fazendo maquetes tridimensionais com dezenas de pesos e contrapesos…

Há católicos que trabalham pela beatificação de Gaudí. Não seria mal que a Igreja tivesse um santo artista dessa dimensão! Gaudí é um criador de maravilhas só comparável, nas artes plásticas, a Bosch, Giotto, Da Vinci, Michelangelo, Canova e Dalí; e, no cinema, a Griffith, Murnau, Dreyer, Lang, Buñuel e Hitchcock…

Há apenas umas três falas no filme, que é quase um filme mudo. Sob uma trilha sonora futurista, hipnótica, por vezes sonífera, a câmera passeia à vontade pelas construções de Gaudí, mostrando detalhes das igrejas e dos palaus que o olho humano não consegue alcançar, os interiores das casas que os turistas não têm a permissão de visitar.

Com apenas uma hora de duração, o documentário Antoni Gaudí, que ninguém daria um tostão para ver pela capa desse DVD, foi dirigido por outro gênio, este do cinema japonês: Hiroshi Teshigahara, o diretor de Mulheres de areia e A face do outro. A edição Criterium é de uma qualidade muito superior à do DVD lançado no Brasil. Vejam aqui.

O DESCASO DAS MÍDIAS

É muito triste constatar o sistemático esquecimento dos escritores e artistas brasileiros.

Enquanto nos EUA, na Europa, na Austrália e em outros países civilizados escritores e artistas são sempre homenageados e lembrados até em selos comemorativos, aqui escritores e artistas podem dar-se dar por felizes se conseguirem publicar uma carta na seção de leitores de um grande jornal para lembrar ao mundo que existem.

Foi o caso do pioneiro da animação abstrata no Brasil, Roberto Miller, quando ele se humilhou lembrando os leitores da Folha seus 30 anos de atividade no cinema de animação, alguns anos atrás.

Eu cheguei a assistir a uma palestra dele sobre Norman McLaren, onde ele exibiu uma série de animações abstratas daquele gênio, e algumas animações que ele fizera inspiradas na obra do mestre, utilizando a mesma técnica de animação sem câmera, com imagens desenhadas diretamente na película.

Como Miller estava em contato com McLaren, pedi maiores informações sobre aquele animador, e Roberto Miller me passou o endereço do National Film Board.

Escrevi para McLaren e recebi uma linda resposta às minhas perguntas e um pacote com textos explicando suas técnicas, muito mais complexas do que aparentam (doei os textos à Biblioteca do Museu Laser Segall, mas conservo a carta assinada por ele).

Anos atrás, li a carta abaixo na coluna de leitores da Folha, e senti uma grande tristeza.

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Se hoje um animador brasileiro como Carlos Saldanha é famoso e celebrado nas mídias, isto se deve apenas ao fato de que ele trabalha nos EUA, país que honra seus artistas.

Os animadores que permanecem no Brasil são esquecidos e para lembrar que existem, precisam enviar uma carta à seção dos leitores dos diários que só divulgam os blockbusters e o que está na moda…

JACQUES FEYDER

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Knight Without Armour (O amor nasceu do ódio, Inglaterra, 1937, p&b, drama, épico, romance). Direção: Jacques Feyder. Produção: Alexander Korda. Com Marlene Dietrich, Robert Donat.

Na Inglaterra, Alexander Korda produziu o drama épico e romântico Knight Without Armour (O amor nasceu do ódio, 1937), sob a direção de Jacques Feyder, a partir do romance de James Hilton, com ação passada na Rússia, durante a Revolução de 1917.

Marlene Dietrich é a Condessa Alexandra Vladinoff, filha do general Gregor Vladinoff, importante ministro do regime czarista. Ela usa roupas glamorosas, viaja de trem pela Europa, baila na Corte do Czar, lê romances nos jardins da sua datcha e não sabe que sua vida de luxo e riqueza está chegando ao fim.

Robert Donat é o fracassado Ainsley Fothergill, um jornalista inglês desempregado, que fala perfeitamente o russo e pretende ganhar a vida escrevendo reportagens para um jornal de Moscou, mas vê-se censurado pela polícia czarista assim que publica seu primeiro artigo.

Fothergill tem o passaporte confiscado, sendo impedido de trabalhar e obrigado a deixar imediatamente o país. Como investira tudo nessa viagem, aceita o oportuno convite do Serviço Britânico de Inteligência para trabalhar como agente infiltrado no movimento revolucionário que crescia na Rússia.

Fothergill ganha uma nova identidade, passa a se chamar Peter Ouronov, e acolhe um terrorista mortalmente ferido que lançou uma bomba na carruagem de um ministro do Czar, quase atingindo também o pai da Condessa Alexandra. Embora tivesse apenas se condoído pelo jovem terrorista, Fothergill é preso e deportado para a Sibéria, com outros comunistas.

Na prisão, não vemos guardas maltratando os detentos, que parecem até livres, mas sem ter para onde ir: vivem em pequenos grupos em cabanas enterradas na neve, lendo, escrevendo, dormindo ou tomando chá, sem ver a luz do dia, pois é noite o tempo todo. Fothergill quase enlouquece.

Finalmente, estoura a Revolução e todos são libertados por tropas comunistas. Um colega de prisão de Fothergill é um revolucionário de peso e assume um alto posto no novo governo: ele nomeia o companheiro para Comissário do Povo e Fothergill passa a desfrutar dos privilégios da Revolução.

Ao mesmo tempo, a Condessa Alexandra percebe que algo errado acontece quando se levanta de  manhã, chama pelos criados e nenhum deles acorre. Sua datcha está vazia. Subitamente ela vê no horizonte dezenas de revolucionários rudes, brutais, que a cercam ameaçadoramente. Eles gargalham rasgando suas roupas finas, invadem o palácio, destroem preciosos objetos de arte, saqueando o ouro e a prata, únicos valores que reconhecem.

Alexandra é mantida prisioneira em seu palácio, até que o Comissário Fothergill a vê, já se apaixonando por ela. Enojado com a selvageria dos camaradas, foge dali com a “inimiga de classe”, salvando sua vida. Os dois passam para o lado dos russos brancos, mas no forte em que se abrigam os militares czaristas agem com a mesma selvageria dos vermelhos, fuzilando todos os bolcheviques. Fothergill é preso e deverá agora ser sumariamente executado.

Felizmente para ele, os comunistas tomam o forte, e passam a fuzilar todos aqueles que não trazem calos nas mãos. Mas então é a Condessa Alexandra que não passa no teste. Fothergill disfarça-se de trabalhador e intervém novamente dizendo ser ela sua irmã, e que ela não estava calejada por ser doente desde criança. O jovem Comissário se encanta com a bela “camponesa” e a salva de um velho Comissário que queria abatê-la a tiros ali mesmo.

O jovem Comissário, é claro, suspeita da farsa, e mais tarde descobre que tudo era mesmo mentira: aquela linda mulher não era irmã, mas amante de Fothergill, e provavelmente uma aristocrata. Mas ele também se apaixonou pela Condessa assim que a viu e não tem coragem de mandar matá-la. Ele até se sacrifica ajudando o casal enamorado a escapar dos camaradas.

Mas não há trens funcionando na Rússia, e os poucos que circulam passam direto pelas estações, sem carregar novos passageiros: os vagões estão completamente lotados. Seria preciso bloquear a locomotiva e subir sobre os vagões, arriscando a morrer de frio na viagem.

Quando o casal empreende outra fuga desesperada através de uma floresta, sempre perseguido pelos comunistas sedentos de sangue dos “inimigos de classe”, a Condessa parece conhecer bem aqueles caminhos, e diante da surpresa de Fothergill, ela explica: “Essa floresta é minha… Era minha…”.

Mais tarde, eles conseguem, junto a uma turba de camponeses que se deitam nas linhas da estrada de ferro, parar um trem e tomar assento. Mas a Condessa cai doente, os amantes são novamente separados. Fothergill consegue entregar Alexandra aos cuidados da Cruz Vermelha. Mas ele será fuzilado pelos sovietes.

A caminho da morte, quando tudo parece perdido, Fothergill escapa dos carrascos bolcheviques e salta pelos trilhos da estação, gritando por Alexandra, que está sendo transportada, em estado de choque, num trem da Cruz Vermelha para algum lugar civilizado da Europa.

Num esforço supremo, Alexandra consegue ouvir os gritos do amado Fothergill, que salta e se agarra a um vagão do trem todo branco da Cruz Vermelha. Ela abre os olhos, e levanta-se do leito, e acena da janela para ele, e os dois finalmente conseguirão escapar juntos e  vivos daquele inferno…

MODA E CINEMA

Audrey Hepburn em 'Funny Face'.

Audrey Hepburn em ‘Funny Face’.

Entrevista inédita de Luiz Nazario a Lady Campos para o jornal Hoje em Dia, Caderno Moda, Belo Horizonte, 18 de agosto de 2010, por ocasião da mostra Moda e Cinema.

Separador de texto

Bem, primeiramente, vamos situar esses dois universos: moda, cinema. O que têm em comum? Como começou essa união? Em sua opinião, é um casamento duradouro?

O cinema é, sem dúvida, o maior lançador de modas e de manias. Um filme de sucesso atinge hoje uma massa de centenas de milhões de infelizes, frustrados e doentes, que se identificam por duas horas, na sala escura, com homens e mulheres lindos e perfeitos, feitos de uma carne cintilante, mais resistente e pura que a nossa: deuses e divas cujos estilos adotamos na esperança de que essa imitação traga para nossas vidas um pouco do glamour produzido artificialmente, a altos custos, nos grandes estúdios. Acabei de ver um vídeo impressionante no Youtube, de uma usuária americana que postou sua própria reação emocionalmente descontrolada diante da première do trailer (!!!) de um minuto e meio de Eclipse, da “saga” (o termo mais prostituído do mundo) Crepúsculo… Ela grita e berra, ri e chora, geme como se estivesse tendo um orgasmo, põe-se a falar ininterruptamente como uma metralhadora disparando balas, diz que assistirá ao trailer mais umas 5 mil vezes e fica chocada, realmente chocada, com o novo penteado da estrela: “Os cabelos dela! O que fizerem com os cabelos dela!” – ela não suporta o novo estilo de penteado que impuseram à sua querida starlet Kristen Stewart (Bella). Sabemos que um dos motivos da impopularidade de Orson Welles em Hollywood esteve associado ao fato de que ele mudou o penteado de Rita Hayworth em A dama de Xangai. Depois de aparecer glamorosa com longos cabelos ruivos em Gilda, ela era apresentada naquele filme de cabelos curtos, tingidos de loiro, e ainda por cima num papel de vilã. Isso revoltou os fãs da estrela. Enfim, as relações entre o cinema e a moda não se alterou tanto, apenas as relações dos fãs se tornaram mais exageradas, histéricas e surrealistas, cultuando estrelas que, por seu lado, tornaram-se mais medíocres, reles e descartáveis.

Quais os mecanismos e arranjos da sétima arte para lançar moda? Qual filme foi precursor nesse aspecto?

Atores carismáticos, personagens queridas, grandes estilistas, tela gigantesca, produções bem cuidadas – tudo no cinema, especialmente no cinema hollywoodiano, contribui para o lançamento de um estilo, de uma moda, de uma mania, de um bordão. É impossível determinar quando isso começou, mas foi provavelmente nos primeiros filmes nos quais o público pode identificar um ator e uma atriz como um astro e uma estrela, passando a cultuar suas personalidades. No cinema mudo, sem dúvida Theda Bara e Greta Garbo, assim como Ramon Navarro e Rudolf Valentino, foram lançadores de moda, pois uniram a condição de astro e de estrela à de sex-symbol. Outros grandes nomes do cinema mudo, como Tom Mix, Charles Chaplin, Lilian Gish, Buster Keaton, etc. eram populares e queridos, mas não tinham o sex appeal que parece estar sempre associado à moda.

Divas, símbolos de elegância, mulheres idealizadas. O cinema criou mitos femininos cultuados até hoje. Esse mecanismo funciona até hoje? Por que funcionou no passado?

O cinema do passado possuía muito mais glamour, pois a censura proibia a explicitação do sexo. Os diretores, roteiristas, cenógrafos e figurinistas esforçavam-se então para projetar em torno do astro e da estrela uma aura de glomour que evocava Eros. O sexo era sublimado num gesto de segurar a mão do parceiro para acender um cigarro, numa perna feminina que escorregava para fora numa meia de seda ao se abrir a porta de um automóvel, num beijo cinematográfico no final da trama que simbolizava a própria penetração sexual… Dentro dessa sublimação os detalhes eram muito mais importantes do que hoje, quando tudo é explicitado: as atrizes não mostram mais o tornozelo, mas a vagina, os astros não insinuam mais sua masculinidade com uma pistola carregada, ou um cigarro aceso, mas com seu falo ereto…

Óculos Wayfarer, vestido preto Givenchy, lenços e outros itens se tornaram eternos depois que Audrey Hepburn os exibiu em Bonequinha de Luxo; o mesmo aconteceu com o trench-coat de Humphrey Bogart em Casablanca, Brigitte Bardot com seu biquíni em xadrez vichy em E Deus criou a Mulher. Como isso aconteceu?

Não há mistério: quando atores carismáticos criando personagens queridas projetam na tela gigantesca as criações de grandes estilistas, não há melhor publicidade para esses produtos. Por isso na festa do Oscar as maiores griffes e as joalherias mais exclusivas emprestam seus modelos mais caros e suas jóias mais preciosas para as estrelas usarem, servindo ao glamour dessas estrelas e ao mesmo tempo fazendo propaganda de suas casas e de suas peças, logo depois vendidas para milionárias que desejam nada mais, nada menos, que um vestido idêntico ao usado pela Angelina Jolie, e o próprio colar de safiras e brilhantes que Gwynne Paltrow ostentou por uma noite…

Vivemos na era de mídias aceleradas como a internet. O cinema continua a produzir essa história de conceituar algum tipo de indumentária? Existe filme com categoria para fazer isso?

O cinema não tem mais a exclusividade dessa influência, pois concorre hoje com a TV, com a Internet, até com o celular… As imagens invadiram tudo. Convivemos de manhã à noite com uma infinidade de telas projetando imagens: nos escritórios, nas salas de estar, nas rodoviárias, nos aeroportos, nos bares, nas academias, etc. Então não é mais possível identificar um filme que tenha lançado uma moda… Mas é interessante notar que o cinema lançou a maior de todas as modas, que o release da exposição se esqueceu de mencionar: a calça jeans, através dos faroestes e, sobretudo, de Marlon Brando e James Dean…

Sexy and the city traz alguma contribuição? Carrie Bradshawl e suas amigas ditam moda?

Todo filme que disponha de fãs (a palavra “fã” é uma abreviatura de “fanático”) está, com certeza, ditando alguma moda junto ao seu público fiel. Mas hoje, como disse, são inúmeras as fontes dos modismos. Mais que o cinema, é a música pop que lança moda – mas uma moda sempre pavorosa, grotesca, sinistra. Não existe mais um meanstream saudável. Existem apenas correntes de influências doentias, que partem de várias fontes e se cruzam criando curtos-circuitos, choques elétricos, crashes desastrosos. Surgem então as vítimas da moda, cultuando ídolos como Madonna, Marilyn Mason, Amy Winehouse e Lady Gaga. São clones de quinta categoria, muito mais horripilantes que os originais…

O figurino de cinema atual. Algum destaque? Os espectadores conseguem linkar filmes atuais ao desejo de ter algum figurino ou peça em seu guarda-roupa?

Não presto atenção em peças de figurino quando vou ao cinema, nem acompanho a moda. Assim, não sei dizer se o que se usa hoje na rua foi inspirado em alguma peça vista em filme. É provável que sim, como demonstra a reação das fãs histéricas da “saga” Crepúsculo. A moda dark deve muito aos filmes de vampiro, que recobrem esse mito de um erotismo de butique, criando fantasias sadomasoquistas surradas que muito inspiram as massas, como na série da HBO True Blood. Mas percebo uma maior influência nefasta sendo exercida pela música pop. Desde as danças pornográficas lançadas pelas músicas pornográficas, que exigem roupas pornográficas, nivelando todas as meninas pobres ao nível das putas, até os “trajes” de Amy Winehouse e Lady Gaga, que evocam junkies estupradas na sarjeta e putas futuristas, inspirando o visual supostamente mais sofisticado das adolescentes de classe média.

RELEASE DA EXPOSIÇÃO

Graça Otoni, Ronaldo Fraga, Tereza Santos e Victor Dzenk participam da exposição Moda e Cinema, do BH Shopping. A mostra tem curadoria de Tereza Santos e traz uma pesquisa minuciosa da relação com a sétima arte e a moda. Dos românticos musicais de Hollywood aos episódios bem-humorados de Sexy in the City.

É inegável o quanto o cinema influencia a moda e dita tendências e comportamentos. Por isso, a sétima arte é a fonte de inspiração para a exposição Moda e Cinema, que será realizada pelo BH Shopping entre os dias 19 de agosto de 12 de setembro.

E para mostrar que Minas Gerais também abre espaço para essa perfeita combinação, o mall escolheu quatro consagrados estilistas que se renderam à magia do cinema para criar suas coleções: Graça Otoni, Ronaldo Fraga, Tereza Santos e Victor Dzenk trarão para a exposição peças de coleções criadas por eles inspiradas nesse vasto universo.

Um acervo com cerca de 100 fotos dos desfiles inspirados nos filmes integram a mostra, além de vídeos de desfiles, com informações detalhadas. A exposição trará ainda manequins vestidos com as peças criadas por cada estilista.

Graça Otoni buscou inspiração no filme Casa de Areia, Ronaldo Fraga trouxe para a passarela suas impressões do longa Quem Matou Zuzu Angel? Tereza Santos traduziu em suas peças o francês Le Diable Blond, de Godard.

Já Victor Dzenk pesquisou a fundo a história do Copacabana Palace Hotel, e entre os achados, uma de suas hóspedes, a atriz Marlene Dietrich, com sua androgenia que virou ícone de estilo e beleza. Resultado de uma cuidadosa pesquisa, a mostra Moda e Cinema leva ao visitante um levantamento minucioso e rico sobre a relação entre as duas formas de arte.

Os temas abordados serão: As Roupas Que Fizeram a História no Cinema, Os Estilistas no Cinema, O Mundo Fashion no Cinema, Os 10 Filmes Considerados Mais Fashion, e a forma como Sofia Coppola e Tom Ford, cineasta e estilista respectivamente, que em um dado momento inverteram os papéis fazendo incursões no mundo da moda e cinema, provando mais uma vez a afinidade entre as duas áreas.

A exposição tem a direção do TS Stúdio, da estilista Tereza Santos, especializada em moda para diversos segmentos do mercado, e ainda da Grecodesign. Segundo a gerente de marketing Lívia Paolucci, o visual da mostra será uma atração à parte. “O visitante será surpreendido com o movimento, cor e a riqueza de detalhes da exposição. Esse evento faz parte da campanha de lançamento da coleção Primavera / Verão, do mall, que tem a campanha também inspirada na combinação das duas artes”, afirma.

Sobre os estilistas e suas inspirações

A estilista Graça Otoni levou para as passarelas sua coleção Verão 2011, inspirada no filme brasileiro Casa de Areia, do diretor Andrucha Waddington. Ela afirma que se apaixonou pela beleza da fotografia, pela história e o objetivo foi transportar para um desfile um pouco daquela magia. “Assisti ao filme uma, duas, três vezes e apaixonei-me por tudo na história”, declara. Nas peças, ela abusou de tecidos de fibras naturais, como algodão e linho. Entre as cores mais usadas, o preto aparece contrabalanceando com o branco e tons frios gelo e prata, que evocam nuvens e ondas.

Ronaldo Fraga trouxe em sua coleção de verão 2001/2002 o questionamento do filme Quem matou Zuzu Angel?. As peças têm ares artesanais e remetem à ingenuidade das roupas de anjos de coroação. A delicadeza e alegria das peças são uma homenagem ao legítimo trabalho realizado pela também estilista Zuzu Angel.

Tereza Santos inspirou sua coleção no filme de Godard Le Diable Blond. A tipografia do filme se transformou em estampa gráfica nos tricôs de algodão.  Entre as peças, um casaco de tricô com a trama que forma a frase “The End” faz alusão aos filmes desta época.

Victor Dzenk inspirou sua coleção de inverno 2008 no Copacabana Palace, dos anos 20 aos Rolling Stones. Para contar a história do hotel, o estilista teve acesso aos arquivos, onde pesquisou textos, convites, fotos, vídeos e arquitetura. Entre os achados, um valioso material sobre Marlene Dietrich, hóspede ilustre, que protagonizou um show histórico em 1959. Ele homenageou sua androgenia, além de looks poderosos, compostos por ternos bem cortados em uma época em que calças compridas eram privilégios dos homens.

Roupas que fizeram história no cinema

Marlene Dietrich, de casaca e cartola no filme Marrocos, de 1930, inaugura a androginia na moda.

Numa cena do clássico E o Vento Levou, de 1939, que se passa durante a guerra civil norte-americana, a voluntariosa Scarlett O’Hara (Vivien Leigh) faz um vestido com as cortinas verdes de veludo da sua casa, que ficou na história.

O trench-coat de Humphrey Bogart em Casablanca, em 1942.

O longo preto de Rita Hayworth, como Gilda, no filme de mesmo nome, de 1946.

A jaqueta perfecto divulgada por Marlon Brando em O Selvagem , de 1953, e, depois, por James Dean.

O vestido frente-única com saia plissada de Marilyn Monroe, em O Pecado Mora ao Lado, de 1955, foi copiadíssimo pelas mulheres.

O tomara-que-caia branco bordado de Audrey Hepburn em Sabrina, de 1954.

Brigitte Bardot usou um biquíni em xadrez vichy com babadinhos em  E Deus criou a Mulher, de 1956, causando escândalo, mas ajudando a popularizar o traje.

O célebre tubinho preto de Givenchy eternizou Audrey Hepburn, no filme Bonequinha de Luxo, de 1961, como ícone fashion.

As calças largas, camisas sociais, coletes e gravatas de Diane Keaton, no filme Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, dirigido por Woody Allen, de 1977, precursor do estilo boyfriend.

O terno branco de John Travolta no papel de Tony Manero, em Os Embalos de Sábado à Noite, de 1977.

O tomara-que caia vermelho vestido por Julia Roberts no filme Uma Linda Mulher, de 1990.

O pretinho de alças cruzadas que Demi Moore usou para sua noite com Robert Redford, em Proposta Indecente, de 1993.

O longo vermelho de Nicole Kidman em Moulin Rouge – Amor em Vermelho, de 2001.

O vestido dourado com profundo decote nas costas usado por Kate Hudson em Como Perder um Homem em 10 Dias, filme de 2003.

O vestido de seda verde de Jacqueline Duran usado por Keira Knightley em Desejo e Reparação, de 2007.

Assinado por Vivienne Westwood, o vestido de noiva que Sarah Jessica Parker, como Carrie Bradshaw, usou no primeiro filme Sexy In The City, em 2008.

Serviço

Mostra Moda e Cinema. De 19/08 a 12/09/2010. Local: Piso NLO – Próximo ao MC Café. Direção de criação: Gustavo Grecco. Curadoria de Moda: Tereza Santos.

Os números de 2014

Os duendes de estatísticas do WordPress.com prepararam um relatório para o ano de 2014 deste blog.

Aqui está um resumo:

A sala de concertos em Sydney, Opera House tem lugar para 2.700 pessoas. Este blog foi visto por cerca de 10.000 vezes em Se fosse um show na Opera House, levaria cerca de 4 shows lotados para que muitas pessoas pudessem vê-lo.

Clique aqui para ver o relatório completo

GEORGE CUKOR

Keeper of the Flame.

Keeper of the Flame (EUA, 1943, 100’, p&b, drama antinazista). Direção: George Cukor. Produção: Victor Saville / MGM. Roteiro: Donald Ogden Stewart, a partir do romance de I. A. R. Wylie. Com Spencer Tracy, Katharine Hepburn, Richard Whorf, Margaret Wycherly, Forrest Tucker, Darryl Hickman.Trilha: Bronisław Kaper. Fotografia: William Daniels. Edição: James Newcom.

O líder civil Robert Forrest, amado por toda a América, morre subitamente num acidente de carro, mergulhando no vazio ao cruzar uma ponte avariada, no meio de uma terrível tempestade. A viúva Christine (Katharine Hepburn) recusa receber jornalistas, mas Stephen O’Malley (Spencer Tracy), um correspondente de guerra que acaba de retornar de Berlim, consegue furar a “muralha de Jericó” e penetrar na mansão dos Forrest.

Diversos personagens interessantes enriquecem a trama: o primo da viúva (Forrest Tucker), que não suporta jornalistas intrometidos; o garoto Jeb (Darryl Hickman), que adora o líder e pensa ser o responsável por sua morte por não tê-lo avisado sobre a ponte em ruínas; a repórter Jane Harding (Audrey Christie), apaixonada por O’Malley, mas que sabe não ter a menor chance com ele; o repórter Freddie Ridges (Stephen McNally), que tenta furar a reportagem de O’Malley; o secretário Clive Kerndon (Richard Whorf), que sabe de cor e salteado o que os jornalistas escreveram sobre o líder; a mãe do líder (Margaret Wycherly), inválida e doente mental, que vive escondida numa mansão isolada da vasta propriedade, e que afirma que seu filho foi assassinado.

Mas é Katharine Hepburn quem rouba o filme com sua presença magnética, que dá vida à personagem complexa, ambígua, misteriosa, manipulada, dominadora, delicada e assassina de Christine. O mistério de sua personagem será desvendado nos minutos finais, quando o jornalista, depois de descobrir a ferradura do cavalo de Christine confronta a mentirosa ao mesmo tempo em que lhe confessa seu amor. Abalada por tantas emoções, Christine abre ao jornalista os arquivos que queimava, contendo o plano maligno do amado e odiado Robert Forrest, que pretendia tomar o poder na América perseguindo os judeus, os negros, os liberais e os sindicatos.

Como o líder popular que ela adorara tornou-se um fascista, sem que ninguém soubesse, ela teve que destruir o homem para salvar sua imagem, deixando que ele atravessasse a ponte que ela sabia estar avariada. O’Malley contesta-a, pois não adiantava manter a imagem boa de um líder que se tornou fascista: o povo não era criança, saberia lidar com isso. Christine se deixa convencer, mas antes que possa viver feliz com O’Malley, é assassinada pelo cúmplice que a manipulava. Ela morre nos braços de O’Malley suspirando que ele revele a verdade ao mundo. Ao invés de escrever a biografia de Robert Forrest na qual trabalhava, O’Malley publica Christine Forrest: Her Life.

Um dia depois de obter os direitos autorais do romance best-seller Keeper of the Flame, de I. A. R. Wylie, Eddie Mannix, vice-presidente da MGM, percebeu ter nas mãos uma bomba política. Mas depois do ataque japonês a Pearl Harbor, e o engajamento dos EUA na guerra, a produção obteve sinal verde. O viés político do filme, radicalmente antifascista, desagradou, contudo, o chefe do estúdio, Louis Mayer, e políticos republicanos chegaram a se queixar a Will Hays, Presidente do Código de Produção, sobre a propaganda comunista disfarçada na trama. Mesmo o diretor Cukor considerou o filme um de seus piores trabalhos.

Visto hoje, Keeper of the Flame é uma visão sensacional de como um líder popular pode se tornar um líder fascista. Incrivelmente, o filme foi todo rodado em estúdio, sem locações. E, durante as filmagens, o ator Forrest Tucker teve um caso com o sedutor George Cukor, enquanto Katharine Hepburn mantinha seu caso extraconjugal com Spencer Tracy.

Keeper of the Flame evoca Citizen Kane (Cidadão Kane, 1941), de Orson Welles: o líder morre logo na abertura do filme e o que sabemos dele é apenas aquilo que os personagens que o conheceram revelam. O segredo de sua personalidade só vem à tona nas últimas cenas, em meio às chamas. O filme também antecipa The Man Who Shot Liberty Valance (O homem que matou o facínora, 1961), de John Ford, pois Christine segue ao pé da letra a máxima daquele faroeste: “Quando a lenda é mais interessante que a realidade, imprima-se a lenda.”…

FRED COE

A Thausand Clowns.

Fred Coe (1914-1979) foi produtor de TV, mais conhecido pelas séries de teledramas The Goodyear Television Playhouse / The Philco Television Playhouse (1948-1955) e Playhouse 90 (1957-1959). Como diretor, Coe realizou apenas dois filmes, ambos notáveis: A Thousand Clowns (Mil palhaços, 1965) e Me, Natalie (Uma garota avançada, 1969).

Em A Thousand Clowns, adaptação da peça homônima publicada em 1962 de autoria de Herb Gardner, o comediante Murray (Jason Robards) fazia sucesso em parceria com um produtor de TV (Martin Balsam), mas, enojado com seu meio, desistiu de tudo. Vive agora do salário-desemprego, sem nenhuma preocupação aparente. Seu estilo de vida é preguiçoso, alegre e repleto de fantasias, mas sem qualquer esperança de futuro.

Tipo ao mesmo tempo repulsivo e apaixonante, divertido e amargo, Murray sustenta, mal e mal, seu sobrinho Nick (Barry Gordon), de doze anos, filho ilegítimo que sua irmã teve e abandonou. O garoto, talentoso e inteligente, sabe imitar perfeitamente a fala característica de Peter Lorre e, com o tio na gaita, apresenta o fabuloso número musical “Yes Sir, That’s My Baby”.

Quando Nick escreve na escola uma redação elogiando os benefícios do salário-desemprego, algumas suspeitas são levantadas. Ao receber a visita de um casal de assistentes sociais que desejam investigar a situação do menino, o comediante consegue voltar a jovem estagiária Sandra Markowitz (Barbara Harris) contra seu neurótico chefe e namorado Albert Amundson (William Daniels), que exigia que Murray arrumasse um emprego.

Depois que Murray vira a cabeça de Sandra a favor de sua causa, ela passa a viver com ele. Embora sua nova vida seja das mais divertidas, Sandra continua a insistir para que Murray volte a trabalhar. O comediante bem que tenta, mas os empregos que lhe oferecem são todos, a seus olhos, odiosos.

Enquanto Sandra arruma o apartamento de Murray, colocando ordem na bagunça, o comediante desiste de procurar emprego e fica a passear pelos arredores do Empire State Buildig, assistindo a um por do sol no Central Park, conversando com outsiders como ele. Mas Nick percebe que o estilo de vida largado de Murray acabará por levar sua nova família à miséria.

Nick passa, então, a ralhar com Murray. O “adorável vagabundo” vê-se, assim, acuado por todos os lados, e, sem ter mais com quem se divertir, acaba por aceitar seu antigo emprego de volta, reatando com o antigo parceiro (Gene Saks), no retorno de um insuportável programa infantil da TV.

São raros os filmes existencialistas na história do cinema. A Thousand Clowns é um deles. Ele mostra o beco-sem-saída de um outsider na sociedade industrial moderna, onde as massas precisam aceitar empregos odiosos para sobreviver, abandonando seus sonhos e perdendo a alegria de viver. É um filme divertido e sério, cômico e trágico, e a dualidade de sua visão crítica do capitalismo é encarnada pelo protagonista, a quem amamos e odiamos ao mesmo tempo.

Me, Natalie (Uma garota avançada, 1969) é um filme que vi há décadas na TV. Era também um raro exemplar de filme existencialista no cinema americano, com Patty Duke encarnando Natalie Miller, uma jovem que nunca foi bonita e que sabe que nunca o será, a despeito da esperança que sua mãe tinha de que ela se tornasse atraente na idade adulta.

Decidida a viver só, Natalie se muda para Greenwich Village, alugando um pequeno loft de uma dama excêntrica (Elsa Lanchester) e consegue um emprego no Topless Bottom Club, para onde segue montada em sua motocicleta. Quando Natalie encontra o artista David, e os dois começam a namorar, ela pensa que a vida lhe sorriu e que esse caso pode dar certo. Mas logo Natalie descobre que David já está casado. Infelizmente, inexiste qualquer cópia deste filme em DVD.

Coe foi enterrado no cemitério Green River em Springs, Nova York. Jon Krampner dedicou-lhe a biografia The Man in the Shadows: Fred Coe and the Golden Age of Television (Rutgers University Press, 1997). A UCLA Film and Television Archive e o Wisconsin Center for Film and Theater Research kinescoparam produções de Fred Coe para a TV, que foram lançadas em DVD.

Filmografia parcial

A Thousand Clowns (Mil palhaços, EUA, 1965, 114’, p&b, drama, comédia). Direção: Fred Coe. Com Jason Robards, Martin Balsam, Barry Gordon, Barbara Harris, William Daniels, Gene Sacks.

Me, Natalie (Uma garota avançada, EUA, 1969, drama, comédia). Direção: Fred Coe. Com Patty Duke, James Farentino, Martin Balsam,  Elsa Lanchester.

FRIEDRICH MURNAU

Tabu.

Tabu: A Story of the South Seas (Tabu, 1931)

Ao romper seu contrato com a Fox com o advento do som e as dificuldades financeiras da Color-Art, para a qual deveria rodar um filme a cores nos Mares do Sul, Murnau produziu por sua conta uma das últimas obras-primas do cinema mudo: Tabu: A Story of the South Seas (Tabu, 1931) [1], que escreveu com Robert Flaherty, que havia rodado Moana, cujas imagens o haviam fascinado e enciumado.

Tabu tomou a forma de um documentário romântico e fantasioso, carregado de erotismo, filmado em Bora-Bora, com atores não profissionais de Bora-Bora e do Taiti.

Os nativos da ilha encontram as nativas banhando-se em cachoeiras. Todas são livres e divertem-se. Quando duas mulheres brigam, o pescador de pérolas Matahi vai separá-las e encanta-se por uma delas, Reri.

Chega um navio e todos vão até ele nadando ou remando em barcos. O sacerdote Hitu escolhe Reri para ser a protetora da tribo por sua beleza, família e linhagem. Destinada à condição de vestal, torna-se tabu: nenhum homem poderá tocá-la ou sequer olhá-la com desejo.

Matahi fica revoltado, e durante a festa de despedida, dança com Reri manifestando seu desejo no ritmo enlouquecido e nos movimentos excitantes de seu corpo seminu, que contagia a todos. O sacerdote percebe a tensão perigosa que existe nesse casal e acaba com a festa.

À noite Matahi sequestra Reri, levando-a para outra ilha. Imaginando-se livre, ele paga as bebidas com o dinheiro que ganha com a pesca de pérolas raras. Mas é enganado pelo chinês da venda, que o faz assinar por todas as bebidas consumidas, e o nativo acaba endividado. Entrementes, Hitu descobre Reri e lhe dá três dias para abandonar o amante e voltar a assumir seu papel de vestal.

Matahi não consegue comprar as passagens de navio para fugir com Reri porque precisou subornar um guarda local com sua última pérola. Desesperado, vai pescar num local proibido – tabu –, devido à presença de tubarões. Nadador exímio, Matahi consegue escapar do tubarão branco que guardava aquelas águas e volta com várias ostras, numa das quais encontra uma preciosa pérola negra.

Mas quando Matahi retorna, Reri já fora levada por Hitu em seu veleiro. Matahi deixa cair a pérola negra que conquistara junto com a flor branca que Reri deixou de despedida. O pescador tenta alcançar o veleiro a nado. Num supremo esforço, consegue alcançar o barco, mas no mesmo instante Hitu corta a corda a que ele se agarrara. O veleiro se afasta veloz. O jovem nada à deriva, esgotado, até ser vencido pelo cansaço e morrer afogado.

A vida dos nativos é o pano de fundo para o verdadeiro tema do filme: o tabu do desejo, representado pelo romance proibido entre a jovem vestal e o apaixonado pescador. Eles são separados pelo velho sacerdote tribal que, em sua dureza implacável, simboliza e encarna o próprio destino. Ele é frio e duro e sua presença ameaçadora, sombria, evoca a presença do tubarão no oceano, impondo o tabu, a proibição de amar, de ser livre, de gozar a vida.

Ao cometerem o que o sacerdote define como pecado, são expulsos do Paraíso, e precisam ganhar a vida com o suor de seus rostos na ilha onde eles se refugiam, uma Terra laica e mercantil. O pescador ingressa no ofício de pescador de pérolas, atividade que ainda exerce com a alegria que tinha ao pescar peixes, sem qualquer interesse econômico.

Mas o vendedor chinês o escraviza em dívidas. E o sacerdote Hitu os descobre e obriga a moça a cumprir seu destino de vestal caso queira poupar a vida do amado. A pérola negra que tomba ao lado da flor branca na areia é uma imagem carregada de simbolismo: também o pescador, tornado sombrio pelo desejo frustrado, submerge nas ondas do mar infinito, cruel em sua indiferença, enquanto Reri, flor branca proibida ao desejo, é privada de amor e de sexo.

É provável que na história do cinema a visão final da morte em Tabu nunca tenha sido superada em sua pungência e comoção. Feito quase que totalmente por atores amadores e com a poupança pessoal de Murnau, Tabu é uma história de amor tão inocente quanto trágica.

Uma semana antes da estreia de seu filme, Murnau sofreu um acidente automobilístico fatal na estrada de Santa Bárbara, na Califórnia. Os supersticiosos nativos que colaboraram na realização do filme atribuíram a morte do cineasta ao fato de ele ter quebrado tabus locais. Tinha 43 anos de idade. Deixou registrado, no seu diário de filmagens, uma frase que poderia servir-lhe de epitáfio: “Quanto mais os anos passam, mais eu o sinto. Meu lar não está em país nenhum, em nenhuma casa, em pessoa alguma…”

O artista que mantinha íntegra sua individualidade não encontrava mais lugar numa sociedade de massas organizadas por partidos, pensando em blocos de ideologia. Na Alemanha, indiferentes à sublime beleza de Tabu, os críticos de esquerda acusaram-no de “diversionismo”: Murnau levaria os espectadores ao Pacífico Sul “sem tocar no problema da política colonial”!

Os críticos comunistas reservavam seus elogios para os filmes russos importados da União Soviética e condenavam em bloco os filmes alemães como “filmes de propaganda capitalista, imperialista e fascista”. O realismo devia imperar mesmo no reino da fantasia. Para os comunistas, como para os nazistas, a arte deveria ser dirigida, sendo os voos da imaginação condenados como “esteticismo”, “arte pela arte”, “diversionismo burguês”. Não admitiam nenhuma fuga à realidade.

Contudo, mesmo no afã de tudo reduzir à luta de classes, os comunistas tiveram o mérito de denunciar o processo de nazificação da indústria cinematográfica a partir da aquisição da Ufa por Alfred Hugenberg, denunciando, a seu modo, a propaganda nacionalista e militarista desenvolvida nas Atualidades da Ufa, que passaram a apresentar inúmeras sequências de paradas e homenagens militares; nos Preußenfilme que faziam da guerra quadros belos e atraentes; e até em certos filmes “pacifistas”, que terminavam por romantizar as batalhas [2].

A edição especial em Blu-ray de Tabu traz a cópia restaurada por Luciano Berriatúa / Stiftung Murnau, apresentando o filme pela primeira vez na edição aprovada pelo cineasta, com cenas cortadas nas versões comerciais, e em seu formato original: 1.19:1, que é quase quadrado. Podemos ver imagens nunca antes vistas de Tabu. Além disso, nos extras, temos uma série de out-takes do filme; um making-of da restauração, com duração de quinze minutos, realizado por Berriatúa; o curta-metragem do cinema nazista Treibjagd in der Südsee (1940), que pirateia as cenas filmadas por Murnau para um documentário sobre a pesca coletiva dos peixes pelos nativos do Taiti, que ficou inacabado.

Assistindo a Treibjagd in der Südsee somos colocados diante de um filme de Murnau que não é absolutamente de Murnau. O material é organizado de maneira realista, como num documentário antropológico, de interesse meramente “científico”, alheio às intenções de Murnau, que certamente criaria um forma poética e erótica para editar essas imagens. Uma prova eloquente de que, sem a visão totalizante e estilizada de um verdadeiro autor de cinema, as imagens mais brilhantes transformam-se em meras curiosidades folclóricas.

[1] Tabu: A Story of the South Seas (Tabu, EUA 1931, 81’, p&b). Direção: Friedrich Wilhelm Murnau. Roteiro: Murnau, Robert Flaherty. Fotografia: Floyd Crosby, Flaherty. Montagem: Murnau. Com Anna Chevalier (Reri), Matahi (o pescador Matahi), Hitu (o sacerdote), Jean (o policial), Jules (o capitão), Kong Há (o chinês). Produção: Murnau-Flaherty-Production, Paramount Publix Corporation. Lançamento: 18.3.1931, Nova York.

[2] KÜHN, Gertraude; TÜMMLER, Karl; WIMMER, Walter (ed). Film und revolutionäre Arbeiterbewegung in Deutschland 1918-1932. Dokumente und Materialien. 2 v., v. I. Berlim: Henschel, pp. 123-124.

O CINEMA ERRANTE DE FAUSTO FUSER

fausto

Diretor, crítico de teatro, pesquisador, doutor e mestre em artes, Fausto Fuser contribuiu de modo notável para a formação de artistas do teatro brasileiro, como professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, onde lecionou as disciplinas de Improvisação, Interpretação, Iluminação, Direção, Projetos Teatrais e Crítica.

Entre 1964 e 1970, Fausto Fuser estudou Cinema e Teatro na Escola Nacional Superior de Cinema da Polônia, a Filmówka, na Ulica Targowa (Rua do Mercado), na cidade de Lodz, que, ao contrário de Varsóvia, não foi alvo dos bombardeios nazistas devido à sua indústria têxtil, que interessava aos alemães.

Fuser escreveu um relato fascinante sobre sua formação na Filmówka de Lodz: seus cursos e professores, as intrigas internas, os dissabores que os artistas provavam no regime comunista, as filmagens que ele pode, com grande esforço, empreender, e os resultados de seus exames.

Numa narrativa deliciosa, evocativa, nostálgica, Fausto Fuser registra de forma viva e emocionante o dia a dia da escola onde grandes cineastas como Andrej Wajda, Roman Polanski, Jerzy Skolimowski, Andrej Munk, Krzysztof Zanussi, Krzysztof Kieślowski e Zbigniew Rybczyński deram seus primeiros passos.

Esse texto antológico, intitulado “Relatos poloneses ou Na Polônia e uma Laranja”, foi publicado pela revista PesquisAtor, n. 2/2013, da USP, e pode ser lido aqui: http://www.revistas.usp.br/pesquisator/article/view/56400.

Na Escola de Cinema de Lodz, uma parte importante dos trabalhos escolares constituía-se na realização de curtas-metragens, ali chamados de “estudos”. Fausto realizou quatro “estudos” em Lodz, que seu filho conseguiu milagrosamente, décadas depois, recuperar e trazer para o Brasil:

Noz (A faca, Polônia, 5’ 37’)’. Um operário polonês regressa bêbado para casa, à noite, depois do trabalho pesado. Nem consegue jantar. A menina tem pesadelo com o acontecido e, na manhã seguinte, a caminho da escola, livra-se do problema menor embalada por uma bossa-nova na rua principal de Lodz. 

Carmem (Carmem, Polônia, 5’ 07’’). Cantora do coral do Grande Teatro de Ópera de Lodz, na Polônia, reclama de ter sido traída pelo “sistema”, enganada com a promessa de participar de forma igualitária dos papéis de solista nas óperas. Ela faz parte do coro que espera, na coxia, atrás do cenário, o momento de cantar o encerramento da ópera. Com a morte da solista no palco, ela tem a chance de se transformar em Carmem.

Gniady (O pangaré, Polônia, 11’ 05’’). Um velho leva seu inútil pangaré para o sacrifício, em meio a recordações mais felizes, entre cavalinhos-bailarinos e sua bela treinadora, no circo da infância, distante-e-presente. No embate com a dura realidade, recusa-se a entregar os pontos.

Wluczega (O vagabundo, Polônia, 21’30’’). Desesperado por não poder sustentar a família em dificuldades um desempregado vaga pelos campos à procura de um trabalho. Mete-se em complicações com a sociedade, sonhando em partir em liberdade com os pássaros. Adaptado do conto homônimo de Guy de Maupassant.

Os filmes foram exibidos em 2008 no Centro Brasileiro Britânico, em São Paulo, de cujo programa eu retirei as sinopses acima. Provavelmente foram ainda exibidos em outras ocasiões, furtivamente. Nunca pude vê-los. Mas não seria uma ótima ideia lançar essas raridades – o cinema errante produzido por um talentoso estudante brasileiro na Polônia – num DVD? Fica a dica…